CRÔNICAS

Barbara: era uma vez uma águia negra

Em: 31 de Janeiro de 2016 Visualizações: 19182
Barbara: era uma vez uma águia negra

"Chove em Nantes. / Dá-me tua mão,
o céu de Nantes / fere meu coração".

Barbara (1930-1997).

Essa é a história de uma canção fabulosa que descreve a ternura e o carinho de uma águia, cuja alma submersa escondia um abutre predador. Só muito tempo depois, a identidade da ave de rapina foi revelada pelos acordes de um piano negro. Aconteceu na França. Foi assim.

A águia sobrevoava, triunfante, os céus de Paris, quando lá cheguei, em dezembro de 1970, com doze dólares no bolso, e fui recebido por exilados que viviam em plena "misère dorée". Éramos os pobres de Paris. Na maior pindaíba, mas em Paris. Com fome, mas em Paris. Foi lá, nesse contexto, que tive o primeiro contato com a música francesa no apartamento de um casal solidário que me hospedou. Não havia ainda desfeito a mala e, no tocadisco, uma voz intensa, cristalina, já cantava L´aigle noir. Era Barbara, a quem até então eu desconhecia. Qual a razão desta canção estar nas paradas de sucesso?

Et ben, dis donc! A letra narra um sonho da cantora. Ela cochilava às margens de um lago, quando inesperadamente surge, não se sabe de onde, uma águia negra que rasga o céu. Com as asas abertas, rodopia lentamente até pousar a seu lado. Com o bico, acaricia-lhe a face, com o pescoço afaga-lhe a mão. Ela reconhece, então, aquela figura que emergia da infância, com olhos vermelhos de rubi, plumas negras e um diamante azul na cabeça, qual rei coroado e poderoso, e que no final vai embora, deixando-a sozinha com sua dor, congelada, morta de frio.

Tantas vezes ouvi essa música nas últimas décadas, enlevado por sua beleza melódica, que decorei a letra. Aquela voz de frágil cristal, suspensa por um fio, que parecia saborear o som, falava de relação amorosa, de carícias. Ela faz parte da última geração de cantores de cabaré que cantavam o amor desencantado, que faz sofrer, que dói, que se materializa. Talvez por isso estivesse nas paradas de sucesso. 

O piano negro

Demorou quase meio século para eu conhecer o outro lado. Somente agora li o livro "Il était un piano noir...", autobiografia inacabada de Barbara publicada um ano após sua morte, na qual ela faz revelações estarrecedoras. Soube do livro por acaso em novembro passado, quando em visita a Paris, a caminho de uma praça onde marcara um encontro, passei diante do nº 6 da rua com o sugestivo nome de Rue Brochant. Uma placa indica: aqui nasceu e morou Barbara. Tirei uma foto.  

Segui os rastros da cantora por ruas e logradouros de Batignolles, bairro em cuja praça ajardinada - a Square des Batignolles - ela brincava, e que hoje tem uma alameda com seu nome. Foi sentado alí, num banco à beira de um pequeno lago, que uma amiga francesa me indicou o livro no qual Barbara revela que sofrera abuso sexual de seu pai durante a infância. A águia negra era seu pai - concluiu o lacaniano Philippe Grimbert, autor de "Psychanalyse de la chanson", embora Barbara não tenha explicitado tal relação entre o assédio e a música.

Deixo a interpretação aos especialistas. No entanto, não consigo mais cantarolar a música que Barbara fez inspirada numa sonata de Beethoven, sem sentir um aperto no coração, pensando no assédio incestuoso. Ela relata que não atinava como a presença do pai continuava a lhe infundir medo, mesmo depois que ele atendeu seu pedido de alugar um piano negro.  

- À mesa, basta ele me olhar, que eu começo a tremer, derrubo meu copo, deixo cair o garfo. Eu não compreendo bem porque ele só é carinhoso comigo quando nós dois estamos sozinhos, aí seu comportamento se torna estranho e suspeito - escreve ela.

O assédio cresce. Ela conta o horror de uma noite em que seu mundo desmoronou com as investidas do pai, quando tinha dez anos e meio. "Cada vez mais aumenta o pavor que sinto do meu pai. Ele sente. Ele sabe. Tenho necessidade da minha mãe, mas como contar-lhe isto? O que lhe digo? Que acho o comportamento dele suspeito? Fico quieta".

Choveu em Nantes

Barbara tem consciência de que não se trata apenas de um problema individual, dela. Faz algumas reflexões sobre o silêncio das crianças nessa situação que parece ser mais comum do que se imagina, embora as famílias prefiram não tocar no assunto:

- As crianças se calam porque os adultos recusam em acreditar nelas. Porque suspeitam que estão inventando. Porque elas tem vergonha e se sentem culpadas. Porque morrem de medo. Porque acreditam que estão sozinhas no mundo com seu terrivel segredo.

Quando completou 15 anos, ela venceu o medo. Numa tarde, durante férias familiares na estação balneária de Trégastel, na Bretanha, fugiu do pai e foi denunciá-lo á Delegacia de Polícia, mas lá, na Gendarmerie, parece que só havia homens. Um dos policiais, que a escutou atentamente, explicou que ela era de menor e que tinha de retornar à sua casa. Quem vem buscá-la? O próprio pai, que "dá a entender que eu sou doente mental, uma impostora, que é tudo invenção". A queixa é arquivada, ela é levada de volta para casa, mas percebeu que o pai, apesar de puni-la, sentiu o golpe.

Algum tempo depois, quem fugiu foi ele. Abandonou a mulher e os quatro filhos, desapareceu e nunca mais deu notícias, ninguém sabia seu paradeiro até que em dezembro de 1959, Barbara, já cantora famosa, recebe um telefonema, informando que seu pai morria num hospital de Nantes. Hesita. Vai visitá-lo com "a lembrança que mistura fascínio, medo, desprezo, raiva e um enorme desespero", mas já o encontra morto. Reconhece o cadáver e providencia o enterro numa fossa comum no caixão mais barato.

No velório, Barbara encontra os amigos do pai, parceiros de copo, de intermináveis partidas diárias de poker e de vagabundagem, que falam dele como "um homem extraordinário que amava os quatro filhos que o rejeitaram". Essa era a versão dele. "Eu escuto, transtornada, o perfil deste homem que eu não conheci e no qual descubro algumas qualidades" - ela diz, sem ironia.

Mas a relação com o pai é apenas um tópico no texto das memórias. Ela fala de sua infância, da relação com os irmãos, mãe, avós, com a escola, com a música. Revive as lembranças da guerra, a perseguição aos judeus e a fuga da família por diversas cidades. Relata sua passagem pela Bélgica, sua carreira artística nos cabarés, seus discos, sua relação com o público e com os amigos com quem dividiu espetáculos. Estão lá Gérard Depardieu, Georges Brassens, Anne Sylvestre, Leo Ferré, Georges Moustaki, Jacques Brel, Edith Piaff e tantos outros.

A questão de gênero também está presente ao longo das páginas. Registra o que sentiu quando compôs sua primeira canção de amor:

- Até hoje, eu só havia cantado canções de amor feitas por homens; agora, eu posso, finalmente cantar o amor como uma mulher. Se é verdade que falam da mesma coisa, as mulheres dizem de forma bem diferente".   

Assum preto

O pai reaparece no final. Nas vezes que retornou a Nantes, Barbara fez discretas visitas ao cemitério levando coroa de flores, sempre desapontada por não havê-lo encontrado ainda vivo:

- Lamento ter chegado muito tarde. Esqueço todo o mal que ele me fez. Meu maior desespero foi não poder dizer a esse pai que eu tanto detestei: "Eu te perdoo, tu podes descansar em paz. Eu consegui me libertar, porque eu canto".

Continuou cantando. Livre. Mas se o pai era a águia negra, ela era o assum preto, que cego dos olhos, canta de dor. Enterrou o pai e compôs a música "Choveu em Nantes", onde exorcisa seus fantasmas.

P.S.- Barbara: Il était un piano noir... Mémoires interrompus. Paris. Fayard. 1998. 189 pgs. Nesta autobiografia publicada por seu irmãos, Barbara investe corajosamente contra o abuso do poder falocrático, consumado logo no espaço doméstico e familiar que devia lhe oferecer proteção.

 

A AGUIA NEGRA (versão em português)

Um  belo dia, ou talvez já fosse de noite,

Estava eu cochilando às margens de um lago,

Eis que de repente, parecendo rasgar o céu

e vindo não se sabe de onde,

surgiu uma águia negra.

 

Lentamente,  com as asas bem abertas,

Lentamente,  eu a vi rodopiar.

Com um farfalhar de asas,

como se tivesse caído do céu,

o pássaro pousou bem perto de mim.


Ele tinha os olhos da cor do rubi

Tinha as plumas da cor da noite

Na sua cabeça, como um rei coroado,

o pássaro ostentava um diamante azulado

brilhando com todo esplendor.

 

Com o seu bico, ele acariciou minha face,

Na minha mão, ele deslizou seu pescoço.

Foi então que eu o reconheci:

ele veio até mim emergindo do passado.

 

- Ouve-me,  pássaro, oh ouve-me e leva-me contigo.

Regressemos ao país de outrora,

como antigamente, nos meus sonhos de criança,

para escrutar, trêmulos, as estrelas, as estrelas.

 

Como antigamente, nos meus sonhos de criança.

como antigamente, sobre uma nuvem branca,

como antigamente, vem incendiar  o sol,

ser um fazedor de chuvas

e fazer maravilhas.

A águia negra, com um fragor de asas,

inicia seu voo para retornar ao céu

Quatro plumas, cor da noite,

Uma lágrima, ou talvez um rubi.

Eu tremia de frio, nada mais me restava.

O pássaro havia me deixado

sozinha com a minha dor.

                                                                                                                

L´AIGLE NOIR


Un beau jour, ou était-ce une nuit
Près d'un lac je m'étais endormie.
Quand soudain, semblant crever le ciel
Et venant de nulle part
Surgit un aigle noir.

Lentement, les ailes déployées,
Lentement, je le vis tournoyer.
Près de moi, dans un bruissement d'ailes,
Comme tombé du ciel,
L'oiseau vint se poser.

Il avait les yeux couleur rubis
Et des plumes couleur de la nuit.
À son front, brillant de mille feux,
L'oiseau roi couronné
Portait un diamant bleu.

De son bec, il a touché ma joue.
Dans ma main, il a glissé son cou.
C'est alors que je l'ai reconnu :
Surgissant du passé,
Il m'était revenu.

Dis l'oiseau, O dis, emmène-moi.

Retournons au pays d'autrefois,
Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Pour cueillir en tremblant
Des étoiles, des étoiles.

Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Comme avant, sur un nuage blanc,
Comme avant, allumer le soleil,
Être faiseur de pluie
Et faire des merveilles.

L'aigle noir, dans un bruissement d'ailes
Prit son vol pour regagner le ciel.
Quatre plumes, couleur de la nuit,
Une larme, ou peut-être un rubis.
J'avais froid, il ne me restait rien.
L'oiseau m'avait laissée
Seule avec mon chagrin.

https://www.youtube.com/watch?v=YdKH1TU2B7E - L´aigle noire

https://www.youtube.com/watch?v=Vzfx25UC9oo - Il pleut sur Nantes

 

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18 Comentário(s)

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Walter comentou:
21/02/2020
Ouvi Barbara pela primeira vez em 1996, quando fui morar na França. Até hoje, suas canções me emocionam. Soube há pouco sobre o abuso que sofreu. Isso deve ter tido um peso enorme na melancolia de suas canções. O mais triste é saber que ela tem razão: isso é mais comum do que se pensa, apesar do silêncio que reina na maioria das famílias.
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Evaristo de Almeida comentou:
04/02/2016
Nossa é estarrecedora esta história! mas, é tão comum como passam os dias. Pra mim é difícil entender tais violências contra as crianças, pois as amo por demais. Como não proteger com todas as forças os infantes indefesos, carentes de proteção e mais ainda quando se trata de sua prole, Oh! como isso me indigna! Penso que um dia venceremos toda essa maldade do coração humano, mas fico feliz por encontrar, como você, Bessa, pessoas amantes da vida. Um forte abraço!
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Ana Stanislaw comentou:
02/02/2016
"Esqueço todo o mal que ele me fez. Meu maior desespero foi não poder dizer a esse pai que eu tanto detestei: "Eu te perdoo, tu podes descansar em paz. Eu consegui me libertar, porque eu canto"". Realmente, uma grande história! Parabéns, Bessa, lindo texto.
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Anne-Marie comentou:
01/02/2016
Como toda verdadeira poesia, a "Águia Negra" não deve ser "explicada". A música e a lingua falam direto, "ao vivo" para o nosso desconhecido... ou não falam. É assim mesmo
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Artur Nobre Mendes comentou:
31/01/2016
Obrigado Bessa, pela linda crônica de uma história trágica e bela a um só tempo.
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Jesus Nogueira (via FB) comentou:
31/01/2016
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Lilian Rodrigues Aguiar (via FB) comentou:
31/01/2016
"Eu te perdoo, tu podes descansar em paz. Eu consegui me libertar,".muito forte essas palavras...
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
31/01/2016
Porque a brutalidade cansa, desgasta... embora tecida pelas teias da inutilidade humana, é possivel - por via da generosidade - transformar-se em perdão!
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Adeice Torreias (VIA FB) comentou:
31/01/2016
Adeice Torreias Mestre Bessa. Brilhante! Texto encanta e traz animo a alma.
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Bruna Franchetto comentou:
31/01/2016
Há décadas não ouvia a poesia de Barbara. Obrigada! Em 1970 eu estava por perto, nas praças (da Europa) daquilo que pensávamos fosse uma revolução. Cheguei no Brasil em 1976. Para recomeçar algo...
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Suely Noroda comentou:
31/01/2016
Desculpa, mas tenho uma dúvida: esse livro foi publicado em português ou só tem em francês? Penso que os leitores brasileiros gostariam de conhecer essa história dessa cantora. É bonito ela dizer que se libertou porque canta. A música liberta, liberta quem canta, mas liberta também quem ouve.
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Hébel Costa comentou:
31/01/2016
Bessa, Na livraria da Eduerj eu gostava quando você passava por lá. Tinha sempre uma conversa despojada de verdades e dogmas. Falava de coisas simples de uma maneira simples que só os verdadeiros intelectuais sabem falar. Eu ficava escutando, oferecia timidamente um ou outro livro com medo de não ser impertinente. Eu sabia que você era um cara legal. Agora sei que você é muito bom. E como escreve bem!
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Nilda Alves comentou:
31/01/2016
Como sempre linda e dura crônica. Assisti Barbara três vezes no palco. A primeira vez, quando ela entrou, me perguntei: como esta mulher tão estranha pode empolgar tanto? Percebi quando ela cantou "Ma plus belle histoire d'amour". Ninguém na plateia ficou sentado, nem eu. Nunca vi ninguém no palco como ela. Inacreditável. Na segunda vez, foi "sur mon île aux mimosas" em que ela dramatizava com Depardieu (que estava lindo e ainda não era o cretino que é atualmente). Quando terminou, os dois entraram juntos para os agradecimentos e ele, delicadamente, a colocou para frente (e se retirou do palco) Mais uma vez o público todo se colocou de pé, aplaudindo delirantemente (eu aí incluída). Realmente, fascinante! Grande abraço e minha admiração de sempre
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Maria Cristina Leandro Ferreira (via FB) comentou:
30/01/2016
Li com emoção esse livro em 2008 quando morei em Paris e descobri Barbara. Admiro muito esta cantora, compositora, mulher, intérprete dos sentimentos universais que nos tocam e afetam.
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Fabiane comentou:
30/01/2016
Eis porque aquela canção é tão triste... Apesar de todo o cansaço que sinto quanto observo o quanto esses bolsonaros, cunhas, gentilis e felicianos da vida conseguem arrebanhar mentes e corações aqui no Brasil (tomando nossa realidade como exemplo), a gente consegue perceber que conseguimos algumas conquistas importantes no campo do reconhecimento de direitos das crianças, adolescentes, mulheres. A mentalidade do Brasil e do mundo mudou sobre isso. Falar de abuso sexual, falar de estupro, falar de machismo hoje é muito diferente do que há vinte, trinta ou quarenta anos. Que possamos continuar lutando para que lindas canções como L'agle noir tenham fontes de inspiração menos trágicas. Que nossas crianças estejam protegidas, na França ou aqui.
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Regina Nakamura comentou:
30/01/2016
É. Lindo. Terrivel! As minhas entranhas se reviraram
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Marilza de Melo Foucher comentou:
30/01/2016
Grande cronista e qualquer coisa que José Bessa escreve me encanta. Ele tem a capacidade de levar o seu leitor à reflexão, a rir, a se indagar sobre a besta humana que as vezes habita o Ser.
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Evando Mirra (via FB) comentou:
30/01/2016
Evando Mirra Nossa, Ribamar, quanta história, quanta emoção! Que texto lindo e terrível. Ah, Barbara...
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