CRÔNICAS

O aborto na história da carochinha

Em: 29 de Dezembro de 1995 Visualizações: 1848
O aborto na história da carochinha

.Recrudesce a briga do bispo Edir Macedo, televangelista do Grupo Record, com o empresário Roberto Marinho, das Organizações Globo, e dos dois juntos contra a sociedade brasileira. Como estamos ás vésperas de um ano novo, talvez seja mais interessante ignorá-los e relembrar aqui uma história da carochinha, daquelas que eram contadas por nossas avós.

Era uma vez uma princesa muito linda como a Vera Fischer em dias de calmaria. Uma bruxa, de pura maldade, fez um feitiço brabo, transformando-a num ser repelente como a Vera Fischer quando agrediu a babá de seu filho com uma tesoura. A fada madrinha tentou neutralizar a bruxaria, restaurando a beleza original de sua afilhada, mas só conseguiu parcialmente. O que aconteceu, então, foi que a princesa ficou condenada a exibir sua rara beleza durante o dia, mas de noite apresentava um rosto deformado, com um narigão monstruoso, uma boca torta e um corpo todo encarquilhado.

A princesa conheceu um príncipe, evidentemente durante o dia, quando era de uma beleza estonteante. Ele imediatamente se apaixonou e a pediu em casamento. Com sinceridade, a princesa contou-lhe tudo: de sua transformação de anjo em demônio. Explicou que cabia ao príncipe, no entanto, escolher se a queria bela durante o dia, quando conviviam com outras pessoas, guardando sua feiura para a noite, quando estariam a sós. Ou se preferia tê-la bela à noite, só para ele, reservando o aspecto horrendo para a convivência social.

A decisão não era fácil. O príncipe, porém, sem vacilar, respondeu com firmeza:

- Quem deve escolher é você, a dona do seu corpo. Caso, qualquer que seja sua decisão.

Então o sortilégio se desfez, porque o único remédio contra o feitiço é o livre arbítrio. Assim, a princesa recuperou, além de sua permanente beleza, aquilo que é mais importante ainda para o ser humano: a liberdade de decidir sobre o seu próprio corpo.

Esta liberdade está sendo questionada hoje no Congresso Nacional. Na discussão sobre o aborto, um grupo de deputados, todos homens machistas, querem acabar inclusive com um direito já conquistado pela sociedade brasileira há muitos anos:  o direito ao aborto em caso de estupro. Querem obrigar as mulheres estupradas, que passem pelos novos meses de gravidez e tenham o filho de qualquer forma.

Entre eles – o que não é de estranhar – deputados do PFL (vixe vixe) e parlamentares conservadores que serviram à ditadura. Mas também lamentavelmente – e isso é surpreendente -  o deputado Hélio Bicudo do PT, que alega razões de ordem religiosa, de respeito à vida.

É difícil para a sociedade brasileira aceitar que um grupo de deputados decida sobre a gravidez indesejada de milhares de mulheres, obrigando-as a ter um filho que não querem. Trata-se de uma interferência impertinente e inaceitável sobre as liberdades individuais e o direito das mulheres. É uma questão de saúde pública. 

Defender o direito ao aborto não significa patrocinar a sua prática indiscriminada, estimulando e incentivando a sua realização, inclusive porque se trata de uma decisão pessoal sempre dolorosa. Significa apenas devolver a liberdade de decisão a quem deve tê-la. Corajoso foi o cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, que aconselhou as mulheres estupradas a procurarem imediatamente um médico, se assim o desejarem, para impedir a continuação da gravidez. Enquanto a igreja do Hélio Bicudo é responsável pela bruxaria, a igreja do cardeal Arns quebra o feitiço e o encantamento.]

P.S. – Aos leitores desta coluna e do Taquiprati desejamos muita disposição de luta neste ano novo que se aproxima – o único caminho para a paz.

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