CRÔNICAS

Adeus Manaus, Adeus Waldick!

Em: 06 de Setembro de 2008 Visualizações: 14098
Adeus Manaus, Adeus Waldick!
.“Adeeeeeus, Manaus / está chegando a hora da parti-ida 
adeus, Manaaaaus / o nosso adeus será por toda a vi-ida”.
 
Pouca gente conhece essa música que Waldick Soriano cantava, nos anos sessenta, quando se despedia de Manaus, aonde vinha com muita frequência. Depois do show em clube familiar, ele terminava a noitada num centro de convivência e lazer, denominado ‘Lá Hoje’, que ficava ali, perto da atual Rodoviária. Lá, já descontraído, no meio das meninas, soluçava, levando a zona inteira ao delírio:
 
- ‘Adeeeeeus, Manaus / adeus meu paraíso minha vi-ida / adeus Manaus / quem é que não chora na hora da parti-ida’.
 
Epa! Manaus, um ‘paraíso’? Para ele, era. Naquela época, Waldik, ainda desconhecido no resto do país, mobilizava multidões na capital amazonense, cuja população o idolatrava. Não é exagero afirmar que o sucesso desse cantor baiano radicado em São Paulo começou aqui, na nossa cidade, que soube apreciar aquela ‘voz rascante de corno transtornado’ e seu repertório de boleros românticos cheios de gemidos e queixumes de amor. Grato, ele compôs uma música para a cidade cuja letra, para variar, falava de desencontro e separação: “essa noite eu chorei tanto, ao saber que ia partir agora”.
 
Logo depois, Waldick foi fazendo sucesso em todo o Brasil, sobretudo entre gente humilde e sofredora. Com pinta de Durango Kid, chapéu preto de vaqueiro, óculos escuros e cabelos com muita brilhantina penteados pra trás, gravou mais de 500 músicas em 84 discos. O fato de ter sido lavrador, garimpeiro, motorista de ônibus e faxineiro, com experiências de trabalho no mundo rural e urbano, talvez tenha ajudado esse baiano de Caetité a entender a alma romântica do povo brasileiro e a figurar no hit parade da vitrola da Leonor.
 
A vitrola da Leonor
 
Dizem as más línguas que a vitrola da Leonor havia sido um presente do seu cunhado Petel, que nutria por ela uma paixão secreta, avassaladora, mas não concretizada. Esse amor proibido pelas convenções sociais envolvendo Leonor, Petel e seu irmão João Camilo já era, por si só, letra de música de Waldick. Talvez daí se explique o seu sucesso. Ele cantava o que as pessoas sentiam e viviam no seu cotidiano.
 
Mas antes, deixa que eu te apresente a dona da vitrola: Leonor, nossa vizinha no bairro de Aparecida, mulher honesta e trabalhadora, dona de uma pequena quitanda de verdura e fruta, casou-se com o taxista João Camilo, já falecido, com quem teve vários filhos. Era tão fofa, que quando eu estava exilado, na França, me mandou uma penca de bananas, que minha mãe levou escondida dentro da mala, e que foi confiscada pela polícia francesa.
 
Não foram feitos ainda estudos conclusivos, mas é provável que o amor impossível do Petel tenha sido decisivo no repertório da vitrola da Leonor. Ele gostava da cunhada e esnobava a Cecéu, que era apaixonada por ele. Por isso, chorava, quando ouvia o Waldick cantar:
 
-“Quem eu quero não me quer / Quem me quer mandei embora / E por isso já não sei / o que será de mim agora. / Passo a noite meditando / revivendo meu castigo / no meu quarto de saudade / solidão mora comigo”.
 
A vitrola tocava a todo volume, dia e noite, noite e dia, e o som da vizinha estrondava dentro da nossa casa: 
 
“Por onde anda quem me quer, quem não me quer onde andará?”.
 
Esteticamente falando, a vitrola da Leonor foi responsável pela formação do meu gosto musical. Quando a Marluce Saubinha, que morava em frente da Igreja, andou falando mal de mim, quem me salvou foi o Waldick:
 
- “Quem és tu / para querer manchar meu nome? Quem és tu / Não és ninguém, não és nada/ Quando eu te conheci, vivias pelas ruas / desprezada na calçada”.
 
Se eu deixasse ligada a vitrola da Leonor, agora, o leitor ouviria as 500 músicas do Waldick, incluindo um dos seus grandes sucessos:
 
- “Esta noite, eu queria que o mundo acabasse / e para o inferno o Senhor me mandasse / para apagar todos os pecados meus/ Eu fiz sofrer a quem tanto me quis / Fiz de ti meu amor infeliz / Esta noite eu queria morrer”.
 
Convém, no entanto, ver o que estava acontecendo em outras ruas.
 
A quermesse de Aparecida
 
Não era só na casa da Leonor e na nossa rua. Waldick imperava também em todo o bairro e na cidade, através das três emissoras locais de rádio: Baré, Difusora e Rio-Mar. No ‘Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida’, só dava Waldick. De cada dez músicas escolhidas pelos DJs Zeca Pinto e Jefferson de Souza, nove eram cantadas pelo Waldick. A décima era de Bienvenido Granda, o cubano que migrou para o México, conhecido como “o bigode que canta”. Ambos têm um repertório comum, formado por bolerões.
 
Nesse sentido, Waldick era vanguarda. Muito antes de se falar em integração latinoamericana, ele já tinha feito uma ponte, gravando versões de sucessos do mundo hispanoamericano como Perfume de Gardênia, Graças, Senhora, Angústia, Oração Caribe, Teu preço, Por um capricho, Mil Tragos, Não toques esse disco e tantas outras.
 
Não havia noite que a Voz Quermesse de Aparecida deixasse de tocar:
 
- “Perfume de gardênia / Tem em tua boca / Eu vivo embriagado/ Na luz do teu olhar / Teu riso é uma rima / De amor e poesia / Macios teus cabelos / Qual ondas sobre o mar”.
 
A indústria de dentifricio bobeou, se fabricasse um creme dental com o nome de ‘Perfume de Gardênia’ conquistaria o mercado amazonense.
 
Conto o milagre, mas não dou nome do santo, porque ele ainda vive. Vamos chamá-lo com o nome bíblico de Putifar, chefe da guarda do faraó, cuja mulher andou dando em cima do José. Pois é, alguém enviou um ‘telegrama no ar’ para o Putifar do bairro de Aparecida, dedicando-lhe essa música:
 
- “Senhora, te chamam senhora / todos te respeitam, / Quem vê quem tu és / Senhora, és uma senhora / mas és mais perdida / que as que precisam perdidas viver./ Senhora, manchaste o nome / o nome de um homem / que um dia em teus braços feliz tentou seeeer”.
 
Não conto o rolo que deu, porque não sou fofoqueiro, mas o bairro sabe.
 
As meninas do ‘La Hoje’ iam ao delírio e choravam, quando o vozeirão do Waldick falava de noites de amor, de triângulos amorosos, de traição, ciúme, angústia:
 
- “Quero viver junto a ti, volta, meu amor, fica comigo, não me desprezes, a noite é nossa e meu amor pertence a ti. Ou então: “Angústia / De esperar por ti / tormento / de esperar-te, amor / Contigo / se foi a ilusão / angústia / feriu meu coração”.
 
No final, elas acabavam implorando para que aquela música não fosse tocada, mas até nisso Waldick interpretava os sentimentos de todas:
 
-“Não toque esse disco, que ele me atormenta, ouvindo esse disco, eu fico a recordar, a história dessa música, relembra meu passado, revive em minha alma as penas que sofri”.
 
Não sei se Patricia Pillar, no seu documentário “Waldick, sempre no meu coração”, registra a relação especial do cantor com Manaus. Se não o fêz, está incompleto. Vamos encomendar outro filme para Donatela Fontini.
 
De qualquer forma, se eu não estivesse acamado e com febre, nessa sexta-feira, juro que teria ido ao enterro do cantor Waldick Soriano, no cemitério do Caju, no Rio. Pediria uma procuração dos candidatos a prefeito de Manaus – quatro deles certamente me dariam – e em nome da cidade, deixaria uma coroa de flores com a seguinte mensagem:
 
“A vitrola da Leonor quebrou, o Petel morreu, não existe mais arraial de Aparecida, mas a gente não esquece tuas músicas. És eterno como a dor de corno, a dor de cotovelo e a breguice que existe dentro de todos nós. Adeus Waldick. Manaus te agradece”.
 

P.S. – Dedico esse texto a uma colega do Curso Clássico do Colégio Estadual do Amazonas, Thereza Porto Mello, sobrinha do Arlindo Porto, que me ensinou a gostar do Waldick Soriano, sem o preconceito besta de quem quer ser chique. 

 

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10 Comentário(s)

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Luiz Pucú comentou:
21/03/2024
La Hoje, cheiro e a voz do Soriano chegando aqui, ó romântico José amigo de fé e com asas no texto...Ailoviu
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Mario Adolpho comentou:
21/03/2024
Porra, guru! Em 1989 fiz uma puta entrevista com ele. E depois ainda fui pro show. Muito boa a crônica. Ganhei, numa aposta, uma grade de cerveja , de um desavisado que nunca acreditou que o clássico (sic) Tortura de Amor tinha saído de um cantor brega. Fui buscar meu vinil e esfreguei na cara dele antes de sorver as ampolas. Tortura de Amor toca fundo na alma.”Hoje que a noite está calma/ e a minha alma esperava por ti/ apareceste afinal: torturando este ser que te agora…,” era foda o “Frank Sinatra brasileiro”!
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Celeste Corrêa comentou:
21/03/2024
Grande Waldick... mas vamos por partes. a Aparecida não tinha só o arraial cantando "perfume de gardênia. Tinha s própria: Valdenora, conhecida por Nora e apelidada pelo Bibi de "Perfume de gardênia" . Com relação à Leonor, a Aparecida também tinha a sua Herodíades, mesmo sem a consumação do adultério eu acho que a paixão ali era recíproca.rs.. No entanto, a a vitrola da Leonor pode ter sido até responsável pela formação do eu gosto musical., mas não vamos imputar à mesma a tua afinação que deixa a desejar...rs. E por último, mas não menos importante, agora eu entendo a voz "waldiqueana" do nosso irmão Tuta.. Afinal de contas, ele escutou muito as músicas do Waldick pois eles foram coleguinhas como frequentadores assíduos do La Hoje.rs
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Pinducão comentou:
21/03/2024
sempre vale a pena ler tuas crônicas, principalmente essa do Waldick. Ah, La Hoje. Oh La Hoje. Beijos da Lindinha. Será que ela ainda está viva, Babá?
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Fábio Alencar comentou:
21/03/2024
Mas tem a parte que o Pinduca contou? Que na despedida de um certo jornalista de Manaus, com destino ao Rio de Janeiro, ele foi estapeado por uma 'profissional' da boite La Hoje? Aos gritos de "Você não pode ir! Não vá! Nããããããoooooo!!!!"
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Serafim Correa comentou:
21/03/2024
Nessa época, 68/69 eu estudava economia e era colega do Josué Filho (administração) que empresariava artistas. Trouxe o Roberto Carlos e teve prejuízo. Aí trouxe o Waldick e bombou. A partir daí era só Waldick (rs)
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Izabel Valle comentou:
21/03/2024
Vale, sim, Babá. Eu, por exemplo, não sabia do sucesso estelar do Waldick em Manaus antes de decolar sua carreira no Brasil e tb da sua conexão pioneira com outros cantores latinos. Adorei a crônica com o seu humor de sempre. Grande abraço.
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Evandro Favacho comentou:
01/02/2023
Segundo relato de Josué Filho na rádio Difusora há mais de 50 anos, o mote de Adeus Manaus foi que o Waldick apresentou-se bêbado durante um show e, ao final, vomitou no palco. Adeus Manaus foi um pedido de desculpa, uma retratação. (Evandro Favacho)
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03/08/2018
Gostei da crônica, seu gosto, é bem o meu, boêmio incorrigível, gosto pela vida acima de tudo.ET: A citação de Bievenido Gandra, na crônica, torna oportuno, não consigo a BIOGRAFIA dêle, tem alguma sugestão?. Grato,
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Carlos Araujo comentou:
13/06/2010
Moro em Recife, mas, sou amazonense nascido no bairro de São Raimundo, aprendi a gostar das musicas de Waldick Soriano ainda menino e, aqui em Olinda onde moro nós fomos vizinhos, meus filhos ainda eram pequenos e, nos fins de semana ficavamos na casa dele, meus filhos na piscina e nós como não poderia deixar de ser ficavamos cantando, eu e o Waldick tinhamos uma grande semelhança de voz, e ele além de cantar gostava de tomar caninha 51. Depois ele se mudou e a ultima vez que nos encontramos foi
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