CRÔNICAS

SIMPLESMENTE LUZIA

Em: 12 de Dezembro de 1995 Visualizações: 2125
SIMPLESMENTE LUZIA

Todos os dias, às 6h da manhã, o relógio de parede da dona Elisa – presente de suas filhas no Dia das Mães comprado no Sukatão – dá seis cacetadas escandalosas e desperta toda a casa, tocando com estardalhaço:

- Oh Suzana, não chores por mim...

Em vez de ir para o Alabama, dona Elisa se levanta, bota pra esquentar a água do café, abre a janela da sala e vê a vizinha a menos de três metros na janela em frente. Lá, já acordada, está a Luzia, toda risonha e faceira:

- Bom dia, Luzia – diz dona Elisa, rimando sem querer, num singelo versinho.

- Bom dia, dona Elisa – responde Luzia do outro lado do estreito beco. Aí, depois de prosar um pouco, de fofocar um pouco que ninguém é de ferro, cada uma vai cuidar da sua vida.

Este mesmo ritual repetido religiosamente, há séculos, desde a época em que Matusalém usava calça curta, sofrerá uma pequena alteração amanhã, 13 de dezembro. Quando o relógio cantar estrepitosamente a viagem do negro do Alabama para New Orleans, em busca da amada Suzana, dona Elisa colocará a água no fogo, abrirá a janela e dirá como sempre:

- “Bom dia, Luzia”.  Mas acrescentará: - “Feliz aniversário, Luzia.

É verdade. Luzia, a nossa nega Luzia, comemora algumas horas depois de Frank Sinatra os seus 80 anos de idade. Ambos são de 1915. Ambos sagitários. Mas enquanto Frank Albert Sinatra nasceu em New Jersey, Maria Luzia Vieira dos Santos – assim mesmo com sobrenome importante de ex-reitor da Universidade do Amazonas – nasceu na poética (e esburacada) Rua Das Flores, quando Aparecida ainda se chamava Bairro dos Tocos.

Ela só foi batizada cinco anos depois e quase se chama Pepina em homenagem ao rei Pepino I da Aquitânia, que morreu em 13 de dezembro do ano 838 da nossa era, informação que seu pai havia encontrado no Almanaque do Capivarol. Prevaleceu, no entanto, a vontade da mãe, que queria homenagear Santa Luzia, a protetora dos olhos.

Sinatra e Luzia: duas vidas, dois destinos. O pai de Sinatra era bombeiro, a mãe parteira. Luzia era filha de Fabrício José dos Santos e Etelvina Vieira dos Santos – ambos imigrantes nordestinos, vindos de Sergipe, atraídos pelo ciclo da borracha. Sinatra é filho único. Luzia é a caçula de 14 irmãos, aliás a única sobrevivente – a Auta – que era baixinha, desfilava na escola de samba de Aparecida.

Luzia é a própria história viva do Bairro dos Tocos. Viveu a época em que suas ruas eram cheias de mato e lama. Lembram, rindo, o humor dos moradores que viam o mato crescer e diziam gozando:

- Zelai por esse jardim, pois é vosso”- repetindo o que estava escrito nas plaquinhas da Praça da Polícia.

Patrimônio histórico e. eu diria, artístico do bairro de Aparecida, Luzia testemunho o seu processo de urbanização, a chegada dos padres redentoristas, a construção da igreja católica e depois do templo protestante na rua Xavier de Mendonça, com o seu pastor, Chagas Carneiro. Um dia ela ralhou com o Opleida, porque na hora do culto ele atirou uma bombinha gritando: - Crente do cu quente.

Luzia viu os moradores festejarem, nas tardes de domingo, no Campo do Hore, as vitórias do Independência, com gols quase sempre de Quinha e do Melado e as defesas espetaculares do Toinho. Vibrou com a sagração da vizinha Terezinha Morango como Miss Brasil.

Se o amigo Carlos Zamith abrir o seu baú velho, encontrará lá dentro a Nega Luzia, que só saía do bairro quando era pequena para estudar no Grupo Escolar Saldanha Marinho. Localizará o voto dela para Presidente da República em Getúlio Vargas, o “Pai dos pobres” e acompanhará o seu choro copioso com o suicídio no Palácio do Catete:

- Ele não se suicidou. Mataram ele – ela me diz na conversa que tivemos quando dona Elisa me pediu que escrevesse a biografia da vizinha.

Sinatra casou-se com Ava Gardner, de quem se divorciou em 1953, ano em que o doceiro Francisco Arruda, conhecido como Chicarruda, propôs namoro à Luzia, mas foi rejeitado. Diariamente, depois do almoço, Chicarruda passava carregando uma caixa retangular de madeira, com vitrines de vidro, dois andares e quatro pernas compridas. Parava em baixo da janela da Luzia e tocava uma gaita para atrair a freguesia. Vendia cocada, bolo de milho, caramujo, mata-fome, pé-de-moleque, broa, queijadinha e muitos outros. Mas para Luzia ele dava doces de graça, se ela quisesse.

Luzia não queria nada com o Chicarruda, por causa da história do Zecafonso, morador da rua Xavier de Mendonça. Uma noite, Zecafonso deu um tiro num porco que invadiu seu quintal, ferindo-o na perna direita. Usou uma bala benta lubrificada com cera de vela do altar da Virgem de Aparecida No dia seguinte – era muita coincidência – Chica Arruda exibia uma grande ferida justamente na perna direita. Era muita coincidência. As más línguas concluíram que Chicarruda, de noite, virava porco, embora com a inauguração do Hospital Tropical, anos depois, o doutor Marcos Barros tenha diagnosticado como leishmaniose. As más línguas retrucaram: tudo bem, leishmanioso causada pelo tiro na perna do porco.

Os 80 anos de Frank Sinatra estão sendo comemorados hoje com muita festa. No topo do Empire State Building – milhares de luzes azuis se acenderão em homenagem à cor dos olhos do cantor mafioso. Os 80 anos da Nega Luzia serão comemorados com um delicioso bolo de chocolate feito pela Preta, melhor que o gosto duvidoso dos doces de Chicarruda.

Quem já provou o molho de pimenta feito pela Luzia (eu tive esse privilégio), capaz de levantar até defunto, quem conviveu com a generosidade da nossa vizinha, sabe que ela merece uma homenagem mais sincera, ainda que menos badalada, do que a feita ao Sinatra. Por isso, abro a janela do Taquiprati e em coro, com dona Elisa, digo:

- Bom dia, Luzia! Feliz aniversário, Luzia!

P.S. – Podemos aproveitar a carona da Luzia para dizer: Bom dia, Mauro Roberto. Feliz aniversário, Mauro Roberto. Isso porque o intrépido publicitário Mauro Roberto Freire de Souza faz aniversário junto com a Luzia. Completa 23 aninhos, recebendo felicitações e volumosa correspondência de todas as associações de unibiótica do Rio de Janeiro.

Ver também 1) O RADIO DA LUZIA - http://www.taquiprati.com.br/cronica/520-o-radio-da-luzia

2) LUZIA, BOECHAT E A HORA DO XIBÉ - http://www.taquiprati.com.br/cronica/1442-luzia-boechat-e-a-hora-do-xibe

 

 

 

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