CRÔNICAS

Retrato de família: aqui jaz quem nunca se dobrou

Em: 02 de Janeiro de 1996 Visualizações: 10144
Retrato de família: aqui jaz quem nunca se dobrou
 “Já doente há quase um ano, quando sentiu que era o fim, se preparou. E preparada, esperou tranquilamente a hora. Chamou Maria Celina – afilhada e filha de criação – e se arrumou, trocou a roupa, após ter tomado um banho. Pediu o vestido que ela mesma havia escolhido e decidido para ser enterrada com ele. (...) Vestiu-se e tornou a se deitar. Tranquilamente, aguardou. Esperou umas poucas horas e morreu, placidamente. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como quem almoça ou janta. Com a mais profunda simplicidade e aceitação”.
 
Este trecho, antológico, não foi extraído de um romance de Gabriel Garcia Marquez, onde alguns personagens anunciam premonitoriamente sua própria morte. Não se trata de ficção. Aconteceu em Manaus, no dia 3 de dezembro de 1947. É o relato da morte de dona Francelina Barbosa, escrito por sua neta Regina Coeli Araújo de Carvalho, autora do livro “Retrato de Família”, que tive o prazer de ler durante as festas natalinas.
 
A avó Francelina, uma pernambucana desaforada, sonhava com um epitáfio para a sua sepultura: “Aqui jaz quem nunca se dobrou”. Usava tamancos e, quando, já velha, os filhos aconselhavam-na a trocá-los por sapatos, ela dizia: “Filho nenhum vai mandar em mim. Nunca”. Tá pensando o quê?
 
Ela casou-se com o advogado pernambucano Francisco Pedro de Araújo Filho, “defensor dos pobres, humilhados e ofendidos”, que morreu aos 61 anos, em Manaus, enquanto dormia, depois de haver se confessado com um padre, em voz alta, na frente de todo mundo, mas ninguém descobriu os seus pecados, porque a confissão foi feita em LATIM: “Confiteor Deo Omnipotenti”.
 
Ele e ela, duas figuraças. A vida deles, por si só, dá um belo retrato de família. Torna-se, além disso, um retrato muito mais amplo da própria sociedade, quando sabemos que do casamento nasceram 12 filhos,entre os quais personalidades públicas: André Vidal de Araújo e Ruy de Araújo.
 
Os doze filhos
 
Ruy governou o Amazonas por várias vezes. André – o Paim – pai da autora, foi o primeiro juiz de menores do Amazonas, além de desembargador, presidente do Tribunal de Justiça, deputado federal, sociólogo, professor universitário e autor de vários ensaios que nos ajudam a compreender melhor a nossa realidade. Era muito querido pelos seus alunos.
 
O livro é, portanto, muito mais do que um “retrato de família”. A autora reconstrói, a partir de dados biográficos de seus avós e de seus pais, o cotidiano no Amazonas, a forma de se vestir e falar, de educar os filhos, a mudança nos usos e costumes, a instituição do namoro e do casamento, o modo de diagnosticar e tratar doenças, a medicina caseira, as canções de ninar, a escola, a relação dos pais com os filhos, as travessuras infantis.
 
São relatos que já teriam grande valor se descrevessem a vida de pessoas anônimas. Adquirem maior significação por se referirem a personagens da história recente do Amazonas. Através do livro, ficamos sabendo que o menino André era um capirotinho danado. Com sete anos de idade, ele acompanhou seus pais a Belém para tratamento de saúde do velho Araújo Filho, porque nenhuma tia aceitou ficar com “aquele capeta”.
 
Na Santa Casa de Belém, Paim fez o diabo. Tornou-se amigo do filho de um enfermeiro. Este novo colega, de uns dez anos, era tão terrível quanto o novo companheiro. O garoto ia ao necrotério, metia o dedo na boca dos defuntos e saía correndo atrás do Paim para fazê-lo chupar aquele mesmo dedo infecto. Meu pai se largava, correndo como um desesperado pelos corredores do hospital, o amigo atrás. Os doentes, coitados, não conheceram silêncio, nem mais tiveram tranquilidade, enquanto meu pai permaneceu ‘hóspede’ daquela Casa de Saúde”.
  
Por causa disso, a vó Araújo aplicava-lhe surras memoráveis. Ela dizia:
 
- “André não tem mais o couro com que nasceu. Levou tanta surra que despelou. Arranquei-lhe o couro. Mas deu resultado. Esta aí o homem”.
 
Os cabeçudos
 
O livro de Regina Araújo de Carvalho é muito agradável de ler, bem escrito, com frases curtas e equilibrada dose de humor. A autora burla-se dos nomes de batismo esdrúxulos que circulam por sua família. Ela mesma devia chamar-se Rósula. Sua irmã Thereza de Jesus escapou por milagre de ter o nome russo de Krupskaia, que era como se chamava a mulher de Vladimir Illitch Lenin. O seu irmão João Bosco Araújo podia ter se chamado Papa Rigopoulos.
 
 “Mamãe teve um irmão chamado Dioscórides. Viveu poucas horas. Também, com um nome desses, melhor a morte. Carregar o peso de se assinar Dioscórides é dose para leão. Alguém falou que esse tio faleceu, com toda certeza, por ‘infecção nominal’. De Acordo”.
 
Os irmãos da autora - filhos do velho André Araújo e de dona Milburges - merecem comentários bem-humorados, como no relato sobre o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora em que a protagonista é dona Ritta Calderaro:
 
Também em Comportamento, Ritta só tirava dez. Comigo, neste particular, o caso era diferente. Muito extrovertida, conversava a todo minuto durante as aulas e nas filas. Um dia, irmã Miquelina falou que eu tinha sido vacinada com agulha de vitrola. Por isso gostava tanto de falar”.
 
São relatos cheios de humor que humanizam os personagens e os tornam simpáticos, na medida em que a autora consegue estabelecer uma cumplicidade com o leitor através do riso. Mas os personagens são de carne e osso, como Aristocles Platão, o famoso doutor Platão, que já teve ter curado tua garganta, leitor (a), de alguma infecção.
 
- “Ele era muito bonitinho. Pena que fosse tão cabeçudo” – conta a autora, que lembra como foi difícil se encontrar um quepe, do Colégio Dom Bosco, que conseguisse entrar na cabeça do Platão.
 
Já o outro irmão, o Joni – o nosso João Bosco Araújo – desde pequeno decidiu que devia usar chapéu. “Era uma piada ver aquele menininho, corpo de criança e cabeça de homem. O crânio era de adulto, pois o Joni era também muito cabeçudo e, de chapéu, a impressão que dava era que a cabeça aumentava ainda mais. Parecia o Santos Dumont da cédula de dez cruzeiros”.
 
O livro recupera episódios ocorridos no Amazonas no tempo em que se usava espartilho de brocado, todo armado com aspas de barbatanas de baleia e em que existiam pessoas que se tratavam por ‘vosmicê’ e usavam, entre elas, os verbos na segunda pessoa do plural.
 
As canções que o Paim inventou para ninar cada filho, a canção do besourinho Zinga-Zunga cantada por dona Milburges, os ‘causos’ narrados pela velha Nanu e o sorveteiro Bandeira que vendia sorvete a crédito para as alunas do Colégio Dorotéia constituem algumas das páginas deste livro carregadas de lirismo. Cada leitor encontra nele a sua própria infância e, nas histórias dos Araújo, fragmentos de sua própria história.  .

 

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2 Comentário(s)

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alberto martins da silva comentou:
13/08/2014
Estou preparando um estudo sobre Francisco Pedro de Araújo. Sou paraibano, filho de Francisco Martins da Silva, nascido em 1897, em Goiana, e falecido em 1974. Meu pai foi aluno de Pedro Araújo em um de seus colégios em Goiana. Meu irmão, o poeta e historiador Eduardo Martins, nascido em Goiana em 1918, já falecido, falava-se da intenção de escrever sobre o professor de nosso pai. Alegro-me em saber coisas da família.
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welington comentou:
23/09/2013
Nossa!! Pelas poucas palavras que li aqui, muito me veio a risada dos fatos engraçados. Estou fazendo uma pesquisa sobre a vida do Sr. André Vidal Araújo. Pelo que li aqui, queria quer visto presencialmente uma dessas cenas. valeu Ribamar.
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