CRÔNICAS

Quem chora quando morre um poeta no Amazonas?

Em: 15 de Fevereiro de 2009 Visualizações: 11932
Quem chora quando morre um poeta no Amazonas?

No regresso noturno, cumpro o gesto / de buscar o local,

 em cada porto / onde possa esconder um sonho morto.

Alcides Werk (1934 – 2003), poeta amazonense

Dois poetas: um, Ernesto Penafort, morreu em 1992 e o outro, Alcides Werk, em 2003. A lembrança de suas mortes, com mais de onze anos de distância, nos leva a formular as mesmas perguntas: quem, no Amazonas, gosta de poesia? E no Brasil: o povo conhece e celebra seus poetas? Qual é o poeta que vive tranquilo em nossa terra? A forma como uma sociedade trata seus trovadores diz muito sobre a sensibilidade da sua elite intelectual e política.

Alguém imagina o Belão (PMDB - vixe, vixe!), presidente da Assembleia Legislativa, emocionado, recitando um soneto da Frauta de Barro do Luiz Bacellar? Já pensou o prefeito Amazonino Mendes tremendo febrilmente de paixão com a leitura de Malária ou Ai de ti Manaus de Aldísio Filgueiras? O Zé Melo Merenda fazendo jogral com as Dez Canções Primitivas do Élson Farias, e o Dudu Braga interpretando Boléka, a onça invisível do universo do Jorge Tufic? Ou, quem sabe, o ex-prefeito de Coari, Adail Pinheiro, gemendo e chorando ao ouvir a Canção do Amor Armado do Thiago de Mello? 

Sim, essa fauna é bem capaz de lacrimejar e gemer, mas não diante do “convite frugal” do Aníbal Beça, ou de qualquer um “supérfluo gastador de palavras”. No caso de Adail, segundo seus colegas de infância, para fazê-lo chorar, basta saber rimar, gritando:

- “Pira pirento, macaco fedorento”.

Ou, então, pronunciar a palavra mágica “ninguém”. É. É isso mesmo: “ninguém”. Adail – dizem seus amigos – é invocado com a palavra “ninguém”, que tem sobre ele um efeito avassalador, despertando recônditos sentimentos e explorando a única experiência que ele vivenciou com a poesia.

A verdade é que Adail soluçava – não sei se ainda soluça - toda vez que ouvia a palavra “ninguém” na música Pobre menina, cantada por Leno e Lílian. Bastava a dupla começar entoando “Pooooobre me-ni-na, não tem ningue-ém”, que ele começava a derramar rios de lágrimas. Esse “ninguém” funcionava como um soco no peito dele. Provocava um pranto incontido, aos borbotões. O chororô aumentava na estrofe:

“Tão pobreziinha ela mora em um barraca-ão, e todo mundo quer machucar seu coraçã-ão”.

Ninguém é ninguém – pode objetar o leitor. Bem, dependendo do contexto, “ninguém” pode ser “alguém”. Quer ver só? Hoje, Adail não chora mais diante da palavra mágica. Ao contrário, fica muito alegre, quando os deputados da CPI concluem: “Ninguém é acusado de assaltar os cofres municipais de Coari. Ninguém está envolvido com prostituição infantil. Ninguém cometeu atos de pedofilia. Ninguém organizou a milícia armada. Ninguém comprou cimento e tijolo na padaria com notas superfaturadas. Ninguém foi acusado de formação de quadrilha. Ninguém é preso no Amazonas”.

Todos choram

Eis o que eu queria dizer: os nossos poetas não podem viver tranquilos, em Manaus ou Belém, porque ‘admiradores’ como esses são a prova de que a Amazônia não é a Estação Primeira de Mangueira. “Em Mangueira – diz Nelson Cavaquinho na voz de Beth Carvalho – quando morre um poeta, todos choram”. Por isso, ele conclui serenamente:

“Vivo tranquilo em Mangueira, porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer”.

Quem foi que chorou a morte de Alcides Werk? Não falo de seus familiares e amigos, mas daqueles que ficaram órfãos de sua poesia, que nem sequer chegaram a curti-la, porque a desconhecem. O nosso poeta tinha nome de alemão, nasceu em Aquidauana (MS), mas era amazonense. Quando ele completou dez anos, sua mãe contraiu malária, em Caracaraí (RR), vindo a falecer. Alcides trabalhou como telegrafista de um posto de atração aos índios Gaviões, no Tocantins, perto de Tucurui. Depois morou em Belém e, finalmente, migrou para o Amazonas. Acabocou-se. Um caboco poeta.

Já faz alguns anos, em 2003, o nosso Alcides nos deixou, sem um pranto solidário e coletivo, o que lhe impediu de cantar como o Nelson Cavaquinho: “Hei de ter um alguém pra chorar por mim, através de um pandeiro e de um tamborim”. Mas ficaram alguns belos poemas que ele escreveu e que constituem, hoje, hinos cantados pelos ambientalistas, como Igarapé de Manaus:

“A água, que é mãe da vida, / (antes pura, clara, doce), / passa aí prostituída, / triste, amarga, poluída, /como se mater não fosse”.

Num sábado à noite, dia 25 de janeiro de 1992, ele escreveu o “Noturno da Alvorada”, com o subtítulo “mini-estudo da crise brasileira”. “O bairro da Alvorada, onde resido / saudado pelo sol, surgindo o dia / tem tudo pra ser bom, reconhecido / até como possível utopia”. Mais adiante, ele diz: “E se chega um político bandido / com palavras de amor e hipocrisia / o grupo social, aqui falido / canta hosanas e até se delicia”. O poema termina com o autor dizendo que faz exatamente o contrário do Adail Ninguém:

“A fome grassa, / o povo está fodido, / o miasma da cloaca contagia, / e eu, da varanda, torre de vigia / deste mundo infeliz, desiludido, / me esforço em transformar merda em poesia”.

Poetas mortos

Os poetas da Amazônia olham sua terra e sua gente de um posto privilegiado de observação, testemunhas antenadas e sensíveis, tentando transformar bosta em verso, converter Adail Pinheiro em Jéferson Peres. Lembrei-me particularmente de Alcides Werk, porque hoje, quando abri o meu exemplar do livro Trilha dágua, caiu lá de dentro uma folha de papel, manuscrita, com a caligrafia dele, contendo o Noturno da Alvorada, com um bilhetinho carinhoso para mim.

Tirei o livro de Alcides Werk da estante motivado pela morte, na última segunda-feira, em Belém, do poeta paraense Max Martins, que tinha 82 anos. Ele trabalhou como jornalista na Folha do Norte. Não sei se é possível encontrar nas livrarias de Manaus e Belém os “Poemas Reunidos” ou o “Não para consolar”, de Max Martins, cuja obra foi traduzida para o espanhol, o francês, o inglês e o alemão, mas que não foi suficientemente lida em português.

A poesia de Max Martins – nas palavras de Manuel da Costa Pinto, colunista da Folha de São Paulo – “dialogou à distância com as tendências literárias modernistas e contemporâneas, até o momento em que sua própria obra se tornou referência para poetas de vários quadrantes do país”.

Ele foi um poeta importante, embora tenha circulado pouco na sua Amazônia: “Não entenderás o meu dialeto / nem compreenderás os meus costumes” – escreve nos versos de seu livro de estréia O Estranho, de 1952. Max Martins, assim como Alcides Werk, Farias de Carvalho, Ernesto Penafort e tantos outros poetas, maiores ou menores, seguramente não tinham qualquer motivo para viver tranquilo na Amazônia, de onde a poesia foi extirpada.

Penafort faleceu, vítima de um enfarte. Leyla Leong, em belíssimo texto no caderno Criação, descarta como hipócrita qualquer tentativa de homenagem póstuma ao poeta morto, porque “a declaração de sua humilhação explícita deixa a certeza de que o artista amazonense explode de mágoa, de falta de incentivo à sua obra, de falta de respeito à sua dignidade”.

Joaquim Marinho explora as mesmas pistas. O próprio Penafort, em seu livro “Do verbo azul”, deixa-nos premonitoriamente algumas indicações:

“Dos passos que foram dados

Nem marcas restam no chão

E dos seus sonhos alados?

Nem as asas restarão. 

Pois foram todos sonhados

No espaço de um porão".

Ficamos todos nós mais órfãos de poesia com o desaparecimento do doce, suave e talentoso Ernesto Penafort, que se encontra com Alcides no sonho morto escondido num espaço de porão. 

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1 Comentário(s)

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Marcio Santana comentou:
02/07/2015
Belíssimo texto denunciando o quanto os escritores da terra sofrem a indiferença, a apatia e ignorância do seu povo cada vez mais distantes que estão da literatura amazonense.
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