CRÔNICAS

A Província e seus ladrões

Em: 04 de Setembro de 2005 Visualizações: 6432
A Província e seus ladrões
As escolas do Amazonas costumam organizar desfiles cívicos para comemorar a elevação do Amazonas à categoria de província, ocorrida no dia 5 de setembro de 1850. Nesse dia, as crianças marcham como soldado cabeça-de-papel. Se perguntarem delas por que os políticos da época queriam criar uma nova província e o que isso significou para a vida dos amazonenses, talvez muitas delas não saibam responder. A culpa não é delas. A escola, que organiza o desfile, nem sempre organiza o conhecimento e quando planeja o que as crianças devem lembrar, decide também o que devem esquecer. 
O esquecimento
O Brasil inteiro, por exemplo, esqueceu que Portugal mantinha duas colônias na América – o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, cada um deles com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua administração, suas leis e sua dinâmica histórica. Um não tinha dada a ver com o outro.
Quando uma dessas colônias – o Brasil – proclamou sua independência, em setembro de 1822, a outra permaneceu subordinada a Portugal por quase um ano. Somente em agosto de 1823, obrigado pela Marinha Inglesa, o Grão-Pará aderiu ao Brasil independente, formando juntos, então, um único Estado nacional, que conservou o nome de Brasil e reservou a designação de Pará para a nova província brasileira.
A nova província – o Pará – abrangia a capitania do Rio Negro, que corresponde hoje, em linhas gerais, ao Estado do Amazonas. A capitania era totalmente subordinada ao governo paraense, mas desde os tempos coloniais, a elite local vinha brigando para apartar a farinhada com o Pará, sem obter êxito. O Maranhão se desmembrou, mas o Grão-Pará centralizou todo o governo da região amazônica.
No século XVII, o padre Antônio Vieira – um jesuíta talentoso que viveu muitos anos na Amazônia – aconselhou o rei de Portugal, D. João IV, de quem era confessor, a unificar todas as capitanias da região num governo único, cuja sede foi primeiro São Luís e, depois, Belém do Pará. Numa carta ao rei de 4 de abril de 1654, ele explicou suas razões, argumentando que as elites locais roubavam muito, assaltavam o erário régio, e que se o rei mantivesse só um governador, haveria só um ladrão, que era mais fácil de vigiar.
“Digo, Senhor, que menos mal será um ladrão que dois, e que mais dificultoso será de achar dois homens de bem que um só”.
Os colonos enfurecidos prenderam o padre Vieira, conselheiro do Rei e o expulsaram da Amazônia, mandando-o de volta a Portugal. Mas Vieira não desistiu. Chegando lá pregou um de seus sermões na Igreja da Misericórdia, em Lisboa, na sexta-feira santa de 1655, perante um auditório seleto, formado por membros da Corte, conselheiros da Coroa, juízes e ministros. Na sua fala, intitulada Sermão do Bom Ladrão, ele disse que na Amazônia vivia uma cambada de ladrões, que furtavam em todos os tempos e modos, no presente, no passado, no futuro, no modo infinito, no perfeito, no mais-que-perfeito e no imperativo.
“Furtam em todos os tempos e modos porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse”.
Cumplicidade com ladrões
Vieira citou o profeta Isaías, que usa o termo “príncipe” para denunciar a cumplicidade de alguns governantes com os corruptos, seja porque esses governantes permitem que roubem, seja porque finjam que não veem o roubo, ou ainda porque conferem poder a quem rouba. Vale a pena, nesses tempos de mensalão, de cuecão e de surubão, lembrar um trecho do sermão.
“Esses governantes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros de ladrões porque os dissimulam, são companheiros de ladrões porque os consentem, são companheiros de ladrões porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros de ladrões, porque talvez os defendem; e são, finalmente, seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhá-los ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo”.
No final, em seu sermão, em plena sexta-feira da paixão, Vieira se dirige a Cristo crucificado:
“Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com Vossa graça a todos o reis que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraísos, como Vós fizestes hoje: em verdade vos digo, hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
O grande pregador jesuíta, no mesmo sermão, assegura que “toda colônia é obra de ladrões” e que, além do erário público, “os colonos roubam a liberdade dos índios” e por isso eram contra um único governo central.
A criação da Província do Amazonas parece confirmar essa afirmativa. Do ponto de vista político, a instalação da província deu uma autonomia ao Amazonas em relação ao Pará. O Amazonas deixou de ser uma comarca, um município, dependente das decisões tomadas em Belém para ter um governador próprio, uma assembleia legislativa com seus deputados, uma legislação específica, que permitiu à elite econômica local explorar a força de trabalho do índios.
A Assembleia Legislativa foi instalada em 1852. O primeiro projeto apresentado pelos primeiros deputados que o Amazonas teve em sua história, no dia 9 de setembro de 1852, propõe:
“Art. 1º - Fica livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com os pincipais das nações selvagens.
Art. 2º Feita a troca, o indivíduo apresentar-se-á com os indígenas perante o Juiz de Paz mais vizinho para assinar um termo de educação por espaço de dez anos.
Art. 3º - Concluídos os dez anos, de que trata o artigo antecedente, poderá o índio ser aldeano.
Art. 4º - Impor-se-á multa de 100 mil réis e 20 dias de prisão a todo solicitador de índios da casa de seus amos; e os aliciadores serão obrigados por qualquer autoridade judiciária ou militar a voltarem para casa dos referidos amos.

Os deputados amazonenses mostraram assim uma enorme voracidade para – usando uma expressão do padre Antônio Vieira – roubarem a liberdade dos índios, além das incursões nos cofres provinciais. Suspeito que as crianças, amanhã, como o soldado-cabeça-de-papel, não vão marchar direito e, por isso, correm o risco de irem presas no quartel..

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