CRÔNICAS

Lili era uma boneca

Em: 06 de Janeiro de 2008 Visualizações: 15452
Lili era uma boneca

Durante muitos anos persegui, inutilmente, nas cinematecas de diferentes cidades por onde andei, um filme musical badalado: ‘Lili’. Até que sua exibição foi anunciada na programação normal da TV Globo. Consegui, finalmente, vê-lo pela primeira vez. Mas o que é que ele tem de especial para que eu o buscasse assim, com tanta persistência? A resposta é simples: esse filme não é um, são quatro, e faltava ver um deles.

Song of love

O primeiro filme é americano, estreou em 1953, dirigido pelo cineasta Charles Walters. Sua canção-tema - “A song of love is a sad song, Hi-Lilly, Hi-Lilly, Hi-lo” - foi cantada no mundo inteiro. Naquela época, o ‘mundo inteiro’ era, para mim, Manaus. Para ser mais exato, o bairro de Aparecida. Por isso, creditei seu sucesso não ao Oscar de melhor canção que ganhou, mas à serenata que o Zé Cavalo fez pra minha irmã Dile, improvisando: “Hi-Dile, Hi-Dile, Hi-Lo”.

O filme conta a história de uma adolescente de dezesseis anos – a atriz Leslie Caron, no papel de Lili – que fica órfã e vai trabalhar no teatro de bonecos de um circo, na França. Lá, surge o clássico trio amoroso. Ela gosta do mágico, vivido por Jean-Pierre Aumont. Mas o cara - oh desencontro! –  já é casado com sua assistente Zsa-Zsa Gabor. Aí, quem se apaixona por ela é um aleijadinho, que caxinga numa perna, o ator Mel Ferrer. Ele passa tímidas mensagens de amor à Lili através dos bonecos, nos quais injeta vida e alma.

O momento inesquecível e patético é aquele no qual Lili contracena com um fantoche. Ela está na frente do palco, mas de costas para a platéia. Detrás da cortina, escondido, Mel Ferrer, manipula um boneco, que aparece na boca de cena. Só os dois: Lili e o boneco. Um bate na mão do outro, de forma alternada, cruzada e seqüenciada, como na brincadeira ‘escravo de Jó’, enquanto cantam e dançam juntos: “A song of love is a song of woe. Don´t ask me how I know”. Parece que o boneco é gente ou que Lili é que é uma boneca.

Era uma boneca

O segundo filme é a versão manauara, elaborada por alguém muito especial que viu o filme americano, nos anos 1950, na tela do finado Cine Guarany, localizado na aldeia semi-rural chamada Manaus, numa época em que avós e mães, de noite, contavam histórias. Esse alguém era uma senhora casada, com 13 filhos, cujo nome começa com a letra “E”. Você adivinhou, leitor (a)! É ela mesma, Dona Elisa, a genitora – digamos assim – desse que batuca essas mal traçadas.

Durante muito tempo, nas noites quentes de Manaus, Dona Elisa embalou as nossas redes e os nossos sonhos contando um dos poucos filmes que viu na vida: ‘Lili’. Aí ela se transformava em Elilisa. Performática, usava recursos corporais, faciais, gestuais, modulando a voz de acordo com os personagens e a cena, fazendo, ao mesmo tempo, a função de contra-regra. Que luxo de detalhes recriados! Que riqueza de pormenores inventados! Que sensibilidade refinada para encontrar poesia no esterco. Dominava a arte de contar. Não descrevia. Descrevivia. Era uma narradora.

Descreviver

O filósofo alemão Walter Benjamin fala da existência de dois grandes tipos de narradores: o narrador-camponês e o narrador-marinheiro. O primeiro está preso à terra, não se mexe, sua viagem é no tempo, adora contar casos do passado ocorridos em sua aldeia. O segundo, irrequieto, prefere se deslocar no espaço. Sua fantasia voa mundo afora, em busca de aventuras. Dona Elisa reunia as qualidades dramáticas dos dois, dando uma interpretação tão pessoal e fantasiosa, que acabou produzindo um segundo filme de sua autoria.

Quem conta um conto aumenta um ponto? Dona Elisa aumentou centenas, de acordo com a reação dos ouvintes. Quando um filho curioso fazia pergunta difícil, ela não tinha o menor pudor em criar novos fatos que, é claro, aconteceram, mas haviam sido omitidos na versão original.

Corrigiu, assim, muitos erros dos gringos. Na versão original, em inglês, a música fala literalmente que uma canção de amor é triste, saudosa, nostálgica. Quem canta, está deprimido, na fossa. Mas Dona Elisa mandou a tristeza embora. Canção de amor é alegre, como ela cantava, repetindo a versão brasileira tocada na Rádio Baré e gravada depois por Maria Betânia e por Gal Costa: “Eu vivo a vida cantando, ai Lili, ai Lili, ai lou, por isso sempre contente estou, o que passou, passou”. 

Se o amor é alegre, o desemprego é trágico. A demissão de Lili pelo dono do circo, um bigodudo malvado, no filme americano é uma cena banal, que dura, apenas, alguns segundos. Dona Elisa prolonga a cena por hooooooras, politizando-a e transformando-a em conflito trabalhista com a dimensão de uma greve dos metalúrgicos do ABC.  Tem lances épicos dignos de um Eisenstein, com música de Prokofiev. Ah, a reação da Lili, quando é colocada no olho da rua! Ah, o choro de Lili! Nem te conto, leitor (a)! No filme americano, é um chorinho contido, muxibento, sem convicção. Na versão de dona Elisa, no entanto, é uma pororoca de lágrimas.  

No Lili I, a história termina assim: o bonequeiro perneta, exasperado, dá um tabefe na Lili, enchendo a cara dela de ‘alegria’. Ela, então, bota o pé na estrada, abandonando o circo. No caminho, reflete e descobre que ama o pernetinha, parece que gostou do tabefe. Volta correndo e se joga nos braços do Mel Ferrer. The End, ao som de “Hi Lilly, Hi Lilly, Hi-lo”.

No Lili II, o erro é corrigido. Quem pede arrego não é a mulher. É o homem que entrega os pontos. O pernetinha é que sai correndo pela estrada, detrás dela, gritando: - “Li-li! Li-li! Li-li!” (A objeção de que aleijado não pode correr só pode mesmo passar pela mente tacanha e mesquinha de quem nunca amou). Dona Elisa, que nunca pediu penico pro velho Barbosa, parece que aqui se projetou na heroína.                                                                
Ah, leitor (a), você precisava ver a expressão facial, a entonação de voz, a respiração ofegante de Mel Ferrer, seu grito rouco e apaixonado: - “Li-li, Li-li, Li-liiiiiii!”, reproduzido pela garganta da Dona Elisa, que parecia azeitada com óleo de andiroba ou de copaíba para soltar grito tão dilacerador que, de acordo com Lili I, o pernetinha nunca deu. Que cena dramática!!! Mancando, coxeando, tropeçando, caxingando, aos tombos, lá vai o nosso herói: - Li-li! Li-li! Li-liiii! O amor, leitora, faz milagres. Esse grito nunca sairá de minha lembrança auditiva.

Dessa forma, o filme Lili II é mais completo, porque capaz de mudar e se renovar a cada contação, diferente do Lili I, engessado, imutável, invariável. Ora, se a própria vida – como diz Garcia Márquez – não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ela recorda e como recorda para contá-la, o que dirá um filme. Vamos ver Lili III.

Lili e Lulu

Quem ouve um conto também aumenta um ponto?  O terceiro filme, aparecidesco, foi aquele que permaneceu na lembrança da gente: uma releitura da leitura da Dona Elisa. Nós, também, acabamos produzindo uma terceira versão de um filme que não havíamos visto.

Sente só o drama, leitor (a): como é que você vai imaginar um filme que nunca viu, mas ouviu centenas de vezes? Como é que vai desenhar o perfil dos personagens, visualizar  rostos, expressões? Só tem uma saída: no momento em que está ouvindo a história, você vai recheando a narração, colocando dentro dela referências do mundo real que te cerca. E qual era o nosso mundo real?  Ele começa sempre com a letra ‘B’ de Brasil e termina com a letra ‘A’, de Amazonas, seja ele Beco da Bosta ou Bairro de Aparecida.

Dessa forma, o padeiro – amigo do falecido pai de Lili – não era o esbelto Monsieur Godet, a quem a gente nunca havia visto mais gordo, mas o seu Armando Português, da Rua Xavier de Mendonça, dono da padaria de forno à lenha, responsável pelo pão nosso de cada dia. A Lili não era a pálida e despintada Leslie Caron, mas a morena Raimunda Roroca, lá da Praça Bandeira Branca.

E o mágico por quem a Roroca se apaixona? Uma das minhas irmãs, mais romântica, achava que era o Dílson do SAPS (a COBAL da época), que fazia serenata para a Fátima Buchinho cantando: “Um passarinho me ensinou uma canção feliz”. Mas pra mim, o mágico era o Quinha, centroavante do ‘Independência’, uma fábrica de gols.

O dono do circo que demitiu a Lili-Roroca era, de repente, o João Bitoito ou então o seu Bento, dono da fábrica de cachaça do Beco da Indústria. Quem era o vizinho do padeiro que, no filme, quer faturar a Lili? Não pode ser outro: é o Lulu, que morava atrás do Grupo Escolar Cônego Azevedo e dava em cima de outra Lili, de carne e osso, a Líliane, filha da dona Lavínia, que até ganhou uns versinhos do Petel, o brechador: “Dona Lalá disse pro Lelé que a Lili deu o loló pro Lulu”.

Finalmente, a dificuldade maior: dar um rosto pro pernetinha. No Lili I, Mel Ferrer era um ex-bailarino, que perdeu a perna na guerra. Agora, leitor, me diz: onde encontrar na fauna de Aparecida um ex-bailarino coxo? Já começa que bailarino era coisa de fiu-fiu. O jeito foi esquecer o balé e procurar quem era manco. Nesse caso, havia o ‘Pé-de-onça’, o Zé de Lau e o Padinho, também conhecido como “Deixa-que-eu-chuto”, que arrastava uma perna esmigalhada por uma seringueira lá no rio Purus. Ficamos, então, combinados: o Padinho é o galã. E o Lili III termina com “Ai Lili” em ritmo de carimbó. Mas tem o Lili IV.

Uma canção que diz

O quarto filme é produto do confronto de Lili II e Lili III com Lili I. Mistura lembranças e traços como os da Leslie Caron, que é água, com os da Roroca, que é vinho. O João Bitoito, ligeiramente gago e desdentado, se mesclou ao ator americano bigodudo e de botas, que tinha três carreiras de dentes kolynizados. O Padinho se fundiu com o Mel Ferrer, com quem se parece tanto quanto as águas do Negro com as do Solimões. O Quinha e Jean-Pierre Aumont viraram uma só pessoa.

Nem os menores detalhes foram esquecidos: figurinos, adornos, acessórios. Dona Elisa contava que Lili saía do circo carregando uma mala com todos seus pertences. Na versão americana, a mala era do tipo sansonite. No Lili IV, era de madeira, forrada com pano forte brim cáqui, com gravuras de santos pregadas na tampa pelo lado de dentro, igualzinha a mala que a tia Dedé trouxe de Quixeramobim.

Na realidade, o espectador, o ouvinte e o leitor são soberanos na recepção crítica de qualquer obra. A partir do mesmo filme são construídos significados diversos de acordo com o freguês. Não existe uma leitura ‘fiel’, ‘única’, mas múltiplas leituras que são o encontro do filme produzido pelo diretor com os significados que cada leitor constrói. Nesse sentido – como querem os alemães que criaram a teoria da recepção – o espectador ou leitor também se transforma em co-autor.

Lili é uma boneca? E a Roroca? Ái, Lili! Ái, leitora! Constrói tua versão, vendo o filme. O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou, cantando a canção tão feliz que diz: ai Lili, ai Lili, ai lou.A little bird told me that you love me and I believe that you do’.

P.S.1 – Texto republicado a partir da crônica em ‘A Crítica’ – Manaus, 18 de junho de 1987

P.S.2 - Duas notícias, uma alegre - o casamento ontem de Maiara e Carlos Fábio, repórter do Diário do Amazonas. Outra triste: morreu Pequenina, irmã da Capuchinha, Alice e do Rubem Rola. Aparecida está de luto.

https://www.youtube.com/watch?v=eLIUzUnoomY

 

 

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

4 Comentário(s)

Avatar
José Lisboa Filho comentou:
19/02/2014
Eu aqui em minha casa (Betim - MG) a cata da tão memorável Ai lili,que foi canção de ninar cantada e solfejada por minha mãe para embalar o meu sono quando criança e encontro com esta bela vivencia em seu recanto. Muito agradável e contagiante. Saudações, Outro José.
Comentar em resposta a José Lisboa Filho
Avatar
Maria de Fatima do Rego Barros comentou:
26/10/2012
Esta música trás saudades da minha infância. Obrigada José Ribamar. Também queria saber onde posso encontrar o filme para comprar. Que Deus o abençoe, Fátima
Comentar em resposta a Maria de Fatima do Rego Barros
Avatar
Nilton Salvador comentou:
09/12/2010
Na celebração do centenário de nascimento de Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, dia 3 de abril, encenaremos uma homenagem a ele, com Hi Lili Hi Lo, que era sua música favorita. Abençoado seja você José Ribamar Bessa Freire, por dar este imenso significado para uma vida sadia que tanta gente necessita, através das tuas letras. Abraços Fraternos
Comentar em resposta a Nilton Salvador
Avatar
Liliane de Alexandre comentou:
09/12/2010
Bom dia! O filme "Lili" me traz recordações de minha infância na casa de meus avós. Tenho procurado loucamente pelo filme, mas não o encontro. Por acaso você tem para vender ou sabe onde posso comprar?
Comentar em resposta a Liliane de Alexandre