CRÔNICAS

A morte e as mortes do Boto Navegador

Em: 26 de Julho de 2009 Visualizações: 12839
A morte e as mortes do Boto Navegador

Ele foi o general da Batalha do Igarapé de Manaus, travada no final de abril de 1985. Comandou 3.500 policiais na guerra contra professores que tentavam entrar no Palácio Rio Negro com um documento, no qual reivindicavam melhores salários e uma educação de qualidade. Não quis conversa. Mandou sentar a porrada. Bateu, humilhou, prendeu. Ele era o governador do Amazonas, Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo. Ele, o Boto. Exatamente um ano antes, como governador, ele inaugurou o Museu Tiradentes, da Polícia Militar, no qual muitos recursos foram investidos. Poderia ter escolhido construir um Museu da Educação honrando seu título de "professor". Preferiu cultuar a repressão. -

Depois de quase trinta anos de críticas públicas, nessa coluna, ao modus operandi do ex-governador, o que escrever, nesse momento em que ele já não mais está entre nós? É preciso respeitar a dor da família, dos amigos, que choram sua morte. Seria deselegante não reconhecer seu lugar na história recente do Amazonas. Mas – pera lá! - também não é correto beatificá-lo ou santificá-lo. Vamos ser comedidos e guardar a compostura.

São Boto

Estão agora querendo inventar um São Boto, que nunca existiu, o que é um atentado contra a memória popular. De repente, retocaram a biografia do Boto com uma injeção de botox. Não querem mais lembrar o espancamento de estudantes que, numa passeata, reivindicavam pacificamente a meia-passagem. Naquela ocasião, a polícia invadiu o velho ICHL e prendeu manifestantes que lá se refugiaram.

Nova manifestação foi marcada. Aí, em nota oficial publicada nos jornais, o Boto pediu aos pais que proibissem seus filhos de participar da passeata, porque havia provas de que um professor iria matar um estudante e culpar a polícia. A Associação dos Docentes acusou o Boto de instaurar o pânico nas escolas, pois ao não citar nomes, em denúncia tão grave, colocava sob suspeita todos os professores do Amazonas. Cada aluno veria seu professor como um assassino em potencial.

No dia seguinte – pasmem aqueles que se esqueceram! – o Boto respondeu, publicando na primeira página dos jornais, a fotografia do pesquisador da UFAM, Frederico Arruda, dizendo que esse era o professor que queria matar um estudante. A nota era assinada por Ele, o Boto. A prova, exibida pelo truculento secretário de segurança,  Klinger Costa, não passava de um documento, no qual Fred solicitava à Polícia a compra de uma arma, já que seu trabalho exigia entrar na floresta. Tudo dentro da lei.

O primarismo da acusação e a calúnia contra um pesquisador competente e íntegro horrorizou as pessoas de bem. Essa forma de tratar os adversários foi uma baixaria sem nome, uma vingança mesquinha. É que semanas antes, em sessão na Assembleia Legislativa do Amazonas, o pesquisador Fred Arruda havia desmontado os argumentos do Boto e sua política em relação ao meio-ambiente e à floresta amazônica.

Perdão e esquecimento

Perdoar, a gente pode até perdoar, sobretudo no momento em que há gente chorando sinceramente sua morte. Mas esquecer, ninguém deve esquecer. Na qualidade de ex-governador e de ex-senador, o Boto merecia as honras oficiais do Estado do Amazonas. No entanto, seu funeral foi espetacularizado, numa mega produção amazônica, com desfile de carro de bombeiros, pétalas de rosas atiradas de helicóptero, discursos, choro e ranger de dentes. Uma competição provinciana com os funerais de Michael Jackson.

Alguns abutres aproveitaram esse show pirotécnico para tentar faturar politicamente, sem respeitar o momento de dor da família. O atual prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, esguichava lágrimas de crocodilo. Segundo meu sobrinho Pão Molhado, era dor de consciência de quem passou a rasteira em seu benfeitor.

A ex-deputada Beth Suely declarou com todas as letras dois pontos aspas: “Eu devo tudo o que sou ao ex-governador. Fui secretária dele, deputada duas vezes, e para coroar tudo isso ele me aposentou como conselheira do TCE (Tribunal de Contas do Estado). Eu devo a minha vida a esse homem. O Amazonas está órfão e o Brasil perde a maior reserva moral política do País”.

Maior reserva moral política do País? Menos, Beth, menos. Escuta aqui, a aposentadoria não é um direito de todo trabalhador que atende a determinadas exigências legais? Se a aposentadoria foi legal, Beth deve agradecer à lei e não ao Boto. Se ela agradece ao Boto é porque aí tem truta. Politicamente, o Boto, com todo respeito, foi um coronel de barranco, capaz de nepotismo, de truculência, enfim dessas coisas de que outro coronel, José Sarney, está sendo agora acusado.

Com todo o respeito, que me desculpem Amazonino e Beth Suely, mas acho que o Boto não foi pro céu. Pro inferno – onde Amazonino tem vaga garantida - ele também não foi. Que gostem ou não seus adversários, o Boto, embora com todos os defeitos assinalados, tinha qualidades e virtudes. Deve estar no purgatório, nos esperando a todos nós, que não somos santos nem capirotos. E essa não é uma questão de simpatia ou antipatia pessoal, mas um debate sobre a memória. Afinal o que queremos esquecer e o que queremos lembrar? Como? 

Narciso Lobo

Quando estava escrevendo a coluna, recebi a notícia do falecimento de Narciso Lobo, jornalista e professor universitário. Esse foi direto pro céu. Esse sim, nós queremos lembrar. Convivi de perto com ele, de quem fui colega, no Curso de Jornalismo da UFAM, e também no jornal Porantim, ligado às lutas indígenas. Sua morte deixa consternados os que com ele conviveram. Reproduzo aqui trecho de uma bela crônica feita por José Dantas Cyrino, ex-secretário municipal de Educação. que escreveu:

“Nunca gostei de discursos em velórios ou enterros, artigos em homenagens póstumas e todas essas formas plangentes de carpideiras. Às vezes me parecem um pouco cabotino, pelo menos quando trazem elogios exagerados aos que já não estão mais em condições de apartear o orador ou redargüir o articulista para pedir moderação”.

“Mas quando recebi a notícia da morte de Narciso Julio Freire Lobo essa crítica inabalável aos emocionalmente incorretos começou a me abalar. Não quero fazer homenagens óbvias por seus currículos acadêmicos e profissionais – isso todos conhecem: Doutor em Ciências da Comunicação, professor da Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), ocupante de uma cadeira na Academia Amazonense de Letras, membro do conselho do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). E tantas coisas mais”.

“O Narciso não era Lobo, era um homem, um ser sensível à dor de seus semelhantes. Um homem doce e dócil, avesso a todas as formas de violência. Um homem solidário, fraterno, um socialista, na mais ampla acepção da palavra. De Lobo só o sobrenome. Sabia escutar. Possuía uma das maiores qualidades de um verdadeiro democrata: a tolerância com os diferentes”.

Adeus, meu amigo Narciso. Adeus, apesar de tudo, Gilberto Mestrinho.

 

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1 Comentário(s)

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janete comentou:
31/03/2012