CRÔNICAS

Diário de tantos natais

Em: 28 de Dezembro de 1988 Visualizações: 8081
Diário de tantos natais
A casa é uma daquelas caixinhas da Cidade Nova, em Manaus, construída com pouco cimento e muita areia, cujas paredes não aguentam o peso de um armador de rede. A sala contém todos os sonhos da classe média lascada: um sofazão forrado com tecido florido, uma poltrona de segunda mão, esburacada e encardida, uma mesinha de centro de perna-palito, um vaso com flores de plástico, alguns bibelôs e, no altar-mor, entronizada, uma televisão comprada a crédito. A noite é de Natal.
A família comemora o nascimento de Jesus, unida em torno da TV, ligadona na novela, para assistir coletivamente – para usufruir – a morte de Odete Roitman. A mãe dá um cascudo no Júnior e exige silêncio. O pivetinho abre o berreiro. Durante os comerciais, alguém muda de canal e aparece um repórter entrevistando personalidades:
- Qual o presente de Natal que mais marcou sua vida?
Ninguém ouviu a resposta porque – plim-plim – novamente o botão volta a sintonizar a novela “Vale Tudo”. Mas o chefe da família, o senhor José Augusto, se desliga mentalmente, fica matutando e pensando no que falaria, caso fosse ele o entrevistado.
Ah, se fosse possível entrar com uma câmera dentro da cabeça do sr. José Augusto, para filmar as suas recordações! A saleta apertada onde ele está vai desaparecendo, se esfumaçando, as imagens ficam embaçadas, as cores mais luminosas, a trilha sonora de uma música lenta e nostálgica toca no fundo – “lembro um olhar, lembro um lugar...lembro a saudade, que hoje invade os dias meus” – e surgem outras imagens com a lembrança de alguns bairros daquela Manaus dos anos 50, da Manaus-que-se-foi, testemunha muda de uma infância que já era.
O sr. José Augusto lembra não apenas um, mas quatro presentes natalinos que marcaram a sua vida: uma pistola, uma bola, uma corneta e uma boneca. Sim senhor, uma boneca.
A pistola
Natal de 1954. Bairro de Aparecida. Beco da Bosta. De manhã cedo, ao acordar, José Augusto, na época conhecido simplesmente como Zé Bundórica, encontrou um pequeno embrulho debaixo da rede, diz-que presente de Papai Noel. Diz-que. Com o coração batendo – tuc-tuc – de emoção, ele desfez o embrulho correndinho, e de dentro, pulou uma surpresa: uma pistola.
A alegria durou pouco e se transformou em desencanto, porque não era uma pistola qualquer, era a sua pistola, exatamente a mesma que ele, Zé Bundórica, ganhara de presente de aniversário, cinco meses antes, e que desaparecera no dia seguinte, sem deixar vestígios. A prova era aquela marquinha no cabo preto, um arranhão adquirido no dia 18 de julho, no derradeiro combate entre Rocky Lane e Buck Jones, em frente ao Grupo Escolar Cônego Azevedo, situado num vale entre duas montanhas do Colorado.
A pistola era um revólver, não de espoleta, mas daqueles que a gente enchia de água vermelha e quando disparava – chuit! – saía um jato de sangue. Foi com ela no coldre que Bundórica, transfigurado em Rocky Lane, travou memoráveis duelos, puxando o gatilho com tanta agilidade, que derrotou pistoleiros como Hopalong Cassidy, Roy Rogers, Gene Autry, Rex Allen e até mesmo alguém do calibre de um Tom Mix. Era respeitado e temido por todos os fazendeiros do Oregon, de Oaklahoma, da Boston Street, do Beco da Bosta, da Xavier e da Bandeira Branca.
Ninguém em todo o faroeste podia jamais esquecer o histórico e cinematográfico duelo travado entre Rocky Lane e Buck Jones. Depois de duas horas de balaceira pura, Buck Jones – representado pelo renegado Inezildo Bate-Papo - caiu, baleado e ensanguentado, na entrada do Beco da Bosta, em frente a taberna da dona Bati, com um tiro certeiro no coração.
Depois disso, a arma de Rocky Bundórica Lane desapareceu. Estaria com o xerife? Rocky Bundórica nunca soube. Vagou inconsolável pelos desertos do velho oeste, chorando dias seguidos, porque sua pistola – presente do padrinho José Dantas – fora roubada, quem sabe pelo próprio Buck Jones, o renegado. E agora, depois de cinco meses e sete dias, vinha o Papai Noel dar-lhe de presente, não uma pistola parecida ou idêntica, mas a mesma, a sua? Tá pensando que o Rocky Lane é besta, Papai Noel?
Natal de 1988. Saleta da casa na Cidade Nova. A Odete Roitman está estrebuchando na telinha da televisão. Bundórica Sênior lembra seu presente de aniversário, que depois de escondido, se converteu em presente de natal. Vendo Bundórica Júnior brincar com um carrinho novo, pensa: “Se eu tivesse que fazer com o meu filho o que fizeram comigo, pelo menos não esqueceria de passar uma tinta preta na parte arranhada do brinquedo”. Depois, com um risinho enigmático raciocinou, se achando muito espirituoso: “Com a inflação atual galopante, a pistola guardada, em cinco meses, viraria uma espingarda ou um canhão”.
A bola
Natal de 1956. As lembranças voltam, a câmara dá um plano geral do bairro de Educandos, para onde a família Bundórica – todos eles tinham perninhas curtas e bunda baixa – mudou: um casebre modesto, próximo à Baixa da Égua.
- Papai Noel não existe - confessou o papai Severino Bundórica ao seu filho Zé, no caminho para o Mercadão. A pindaíba era tão grande que os despachos de macumba, em vez de frango, eram feitos com aqueles cubinhos de sopa Knorr. Como dar um presente de Natal nessa situação?
Pelo preço de dois tostões, o papai Severino Bundórica comprou, ali no Rodo, numa banca de marreteiro, uma bola de sernambi que descascava como a pele da gente quando pega muito sol. Era provavelmente uma bola parecida com aquela que o francês La Condamine viu no alto Solimões, entre os índios Omagua, na metade do século XVIII. Papai Bundórica não sabia disso. Quem lembra somos nós, agora.
A bola de sernambi, presente de Natal, era brinquedo de pobre naquela Manaus-que-já-era. Dois dias depois, numa pelada na Baixa da Égua, com uma bicanca, a bola de dois tostões bateu num poste e murchou. Ficou engilhada, como um maracujá engavetado.
A corneta
Natal de 1958. A câmara dá um ‘close’ na cobertura colorida de uma catraia, pintada de azul, com uma árvore de natal na cobertura e o nome em letras pretas: “Rainha dos Bucheiros”. A família Bundórica mora agora numa palafita alugada, no igarapé do São Raimundo. Zé Bundórica atravessa de catraia para o bairro de Aparecida, ‘morcega’ um bonde até a estação e anda a pé da Matriz até a segunda ponte, debaixo de um toró amazônico.
Cinco horas de espera numa fila quilométrica na av. Sete de Setembro, empurra-empurra, desmaios, gritos, confusão, uma senhora peituda imprensou o Zé Bundórica nas grades do Palácio Rio Negro, onde o governador Mestrinho distribuía demagogicamente brinquedos às crianças.
Vale a pena tanto sacrifício para ganhar de presente uma corneta azul, de plástico, vagabunda e fanhosa? O Zé não gostou, trocou por um jogador de botão feito de caroço de tucumã. “Esse Boto um dia me paga” teria pensado o Zé Bundórica se tivesse consciência política ou se pedisse a nossa opinião. Não pediu. No entanto, nas últimas eleições, se vingou e não votou no Boto.
A boneca
Natal de 1960. Papai Severino Bundórica era contínuo no antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), ali no edifício do IAPTEC, mas vivia fugindo pro bar do Quintino, onde tomava umas e outras. Na festa dos funcionários, no quarto andar, houve distribuição de presentes. Outro embrulho de desencanto. O Papai Noel trocou os nomes dos pacotes, e deu ao Zé Bundórica, equivocado, uma boneca loura, que abria e fechava os olhos azuis. Humilhado, o Zé chorou muito, porque o irmão dele disse que ele era fiu-fiu e mariquinha. Mas como sua irmã ganhou um caminhão, a troca foi feita e ficou tudo em casa.
- Bibite, bibite! - Lá vai o Zé puxando o seu caminhão, com carroceria amarela e preta.
Natal de 1988. O sr. José Augusto, funcionário da SEMEC, proprietário de um fusquinha 1970, com a prestação da casa atrasada em apenas dois meses, se liga outra vez na TV, onde a Raquel está beijando o Ivan, acalentados ao som de “Sorry” e vigiados pelo olhar sonhador e romântico de mamãe Bundórica que pensa: “Bem que o Zé podia ser bonito como o Antônio Fagundes”.
Zé Bundórica olha com ternura o seu filho, o José Augusto Júnior, que agora está brincando com uma bola de verdade, comprada na Lobrás, a antiga Quatro-Quatrocentos, e que não herdou o apelido do pai. Seu filho não é Bundórica. É Júnior ou Juninho.
José Augusto tira um cigarro Free da carteira, dá uns tapinhas repetidos com o filtro na caixa de fósforo – mania do velho Bundórica que fumava cigarro Astória, aquele amarelinho sem filtro. Acende, dá uma tragada, joga a fumaça pelo nariz e se sente um homem realizado.
- Com o 13º salário – ele pensa, olhando para o buraco na parede de onde caíra o armador de rede – eu vou reforçar com bastante cimento.
Ninguém na Cidade Nova suspeita que o funcionário José Augusto, auxiliar administrativo da SEMEC, é o mesmo Zé Bundórica da bola de Sernambi, da pistola, da corneta e da boneca. Mas se você, leitor (a), fosse Freud de igarapé, certamente verificaria que na alma dele existem alguns arranhões semelhantes ao do cabo do revólver. Não tem tinta preta que esconda.
O filme termina com as vozes em off da Cleomar, da Dagmar e do Brígido Nogueira, comandando o coro na Missa do Galo: “Glo-o-o-o-o, o-o-o-o, o-o-o-o, ria, in excelsis Deo", enquanto aparecem as legendas com os créditos. Título: Natal Bundórica. Direção: Euclides Coelho de Souza, o maior titiriteiro da América Latina. Roteiro: Zé Bessa. Segue a lista dos atores que interpretaram Severino Bundórica, Zé Bundórica, Mamãe Bundórica e José Augusto Júnior.
 

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