CRÔNICAS

As crianças do Catalão

Em: 11 de Março de 1996 Visualizações: 3002
As crianças do Catalão

.- Olha aí, gente! Olha o “terceiro ciclo” do Amazonino arrebentando no Lago do Catalão, município de Iranduba! O tenor José Carreras, que homenageou a Andaluzia no Teatro Amazonas cantando Granada, poderia muito bem ter celebrado sua terra natal, a Catalunha, entoando:

- Iranduba tierra soñada por mi. Tu cantar se vuelve gitano pererê pão duro…

Se fosse em abril, o Carreras daria uma canja na “Festa do Repolho”, em Careiro da Várzea.

Quantos habitantes tem o município de Iranduba? Mais ou menos umas 20 mil almas, ou seja, uns 40 mil braços que produzem hortaliças, laranjas, mamão, milho e farinha. E peixe. Com o suor de seus moradores, Iranduba ajuda a matar a fome da população de Manaus, contribuindo para o abastecimento da nossa cidade.

Dentro do município, existe uma comunidade conhecida como “Catalão”, situada a 25 quilômetros de Manaus, à margem esquerda do rio Solimões, composta de 58 famílias num total aproximado de 300 pessoas, que moram em casas flutuantes e vivem da pesca. Lá só existe escola primária de 1ª a 4ª série. As famílias, cujos filhos desejam continuar estudando, têm três opções:

1. Mudar-se definitivamente para uma favela de Manaus. Mas aí as crianças correm o risco de passar fome e podem rapidamente se converter em “meninos de rua”, com ameaças de pegarem porrada da polícia e do Lupércio Ramos, o bicho-papão do terceiro-ciclo, que preside o Instituto Estadual do Bem-Estar do Menor.

2. Transferir-se para a sede do município de Iranduba distante 4 horas de navegação. Isso implicaria abandonar suas casas e suas roças, sem garantia de encontrar teto, terra e água e ainda por cima com o risco das más companhias, isto é, de conviverem com o Nelson Maranhão, então prefeito municipal.

3. Transportar as crianças até a escola da sede do município mais próximo – Careiro da Várzea – distante apenas meia hora de motor, o que permite continuar plantando suas verdurinhas em Catalão e pescando no lago.

O barco-escola

A opção mais sensata é a terceira. Por isso, foi escolhida por dona Maria do Carmo, quando em 1992 dois de seus filhos e mais outros sete alunos tiveram que cursar a 5ª série. Com muito esforço, dona Maria do Carmo poderia pessoalmente migrar para Manaus. Mas nesse caso, as outras crianças ficariam sem estudar. Ela decidiu, então, morar de segunda à sexta-feira perto da escola, no Careiro, ficando responsável pelos meninos.

Uma doença grave prostrou dona Maria do Carmo e detonou o esquema. Aí, para que as crianças continuassem estudando, era necessário fretar um barco, que as levasse de manhã e as trouxesse à tarde. Os plantadores de verdura do Catalão não tinham grana para isso. Conseguiram a ajuda de uma amiga, que pagava a metade, as famílias dos alunos a outra metade.

No ano seguinte, em 1993, o número de estudantes subiu para 14. A comunidade do Catalão pediu ajuda ao prefeito de Iranduba e ao Secretário Estadual de Educação, enquanto continuava pagando a metade do aluguel do barco. Os apelos foram inúteis. Em 1994, quando os alunos já eram 18, o prefeito de Iranduba mandou, em abril, um barco velho e caindo aos pedaços, retirando-o depois de duas semanas, sem qualquer explicação.

Desesperados, pais e mães começaram uma via sacra pelo corredores burocráticos das repartições públicas. O então secretário municipal de Educação prometeu ajudar, enrolou daqui, costurou dali e empurrou com a barriga para o Secretário Estadual de Educação. Este, em pleno ano eleitoral, mandou a SEDUC pagar o aluguel do barco, o que aconteceu somente durante dois meses. Depois da eleição, cortaram o pagamento. O dono do barco ameaçou suspender o serviço. A comunidade teve que se virar para terminar o ano letivo.

O Terceiro Ciclo

Chegou, enfim, o governo do Terceiro-ciclo, em 1995, quando os alunos do Catalão já eram 33. O governador Amazonino, bacabeiro, contou farofa, disse que fazia e acontecia, que o interior receberia todo o apoio para a produção e blá-blá-blá e lesco-lesco. A comunidade do Catalão – coitada! – acreditou. Procurou o novo Secretário de Educação, José Mello Merenda.

- Deixa comigo. No Terceiro-Ciclo nenhuma criança vai parar de estudar por falta de transporte ou merenda – declarou enfático esta autoridade. A SEDUC pagou, então, o frete, mas só até julho, quando o Mello Merenda – parece – descobriu que eleitor de Iranduba não vota pra prefeito de Manaus. Ele foi, pessoalmente, avisar ao dono do barco que não continuasse transportando os alunos, pois não pagaria mais. As crianças passaram a ir à aula, em canoas emprestadas, enfrentando os perigos da travessia do rio Solimões e do encontro das águas numa canoa frágil.

Em 21 de dezembro de 1995, em clima natalino, a coordenadora da Pastoral da Criança, Nádia Vettori, enviou ofício à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), em Brasília, solicitando ao Programa Nacional de Transporte Escolar (PNTE) a solução do problema que afetava agora mais de 40 crianças do Catalão.

A coordenadora do PNTE, Edileusa Santana da Silva, com surpreendente agilidade, respondeu informando que no dia 29 de dezembro a FAE havia assinado convênio com a SEDUC para atender o problema de transporte de alunos nas regiões periféricas de Manaus. Com esta informação, Nádia Vettori procurou o responsável pela FAE no Amazonas, o João Ribeiro.

O Joãozinho – quem te viu e quem te vê – é agora um homem importante, muito ocupado, com agenda cheia, parece até que trabalha. No intervalo entre vários telefonemas, ele informou que não está sabendo de nada, que não pode fazer nada, que estava muito assoberbado, que a SEDUC é que devia saber. Só faltou dizer:

- Não enche o saco, Nádia. Vai procurar o Zé Mello, vai.

Ela foi. No dia 14 de fevereiro, José Mello Merenda recebeu a Coordenadora da Pastoral da Crianças. Afável e gentil, Zé Mello garantiu que a SEDUC se limitou apenas a repassar a verba para a Prefeitura. A Secretaria Municipal de Educação confirmou:

- Foram R$ 70.000,00, mas isso não é suficiente para pagar o freto das crianças do Catalão.

Quer dizer: tudo voltou à estaca zero. Mais de 40 alunos e alunas do Catalão continuam sem transporte escolar – um direito que lhes é assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelas leis federais, estaduais, municipais.

O governo do Terceiro-ciclo é mesmo uma grande fábrica de meninos-de-rua. A quem devemos pedir socorro? Será que o João Ribeiro e o Zé Mello Merenda querem nos obrigar a recorrer ao Luís Fernando Nicolau, para que ele fiscalize lá por Brasília porque esta grana não está sendo usada no transporte escolar?

Socooooooorro, dona Edileusa Santana da Silva! Dê um puxão de orelha no Joãozinho Ribeiro para ver se ele se mexe. As crianças do Catalão não podem ficar sem escola.

P.S. – Nádia, maninha, fica no pé desses caras. Não desanima.

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3 Comentário(s)

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Rina Albuquerque (via FB) comentou:
17/03/2020
Essa mulher foi e sempre será muito importante pra nós amazonense
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Elvira Eliza França(via FB) comentou:
17/03/2020
Olhem esse artigo, Nadia Vettori, Reuly Ferreira e Elza Sotero para se lembrarem um pouco da história do pessoal da Costa do Catalão. E quem quiser saber mais sobre esse grupo e essa ex-líder da Pastoral da Criança, leia o artigo a seguir: https://amazoniareal.com.br/da-italia-para-o-amazonas.../
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Elvira Eliza França comentou:
17/03/2020
Interessante essa história do pessoal da Costa do Catalão. Em 1997 comecei a assessorar Nádia Vettori, na Pastoral da Criança, que me pediu para dar apoio às mulheres daquela comunidade, porque estavam muito estressadas e ficando doentes. Comecei dando capacitação para as professoras pela manhã e à tarde fazia terapia individual ou familiar. Na época, a Secretaria Municipal de Iranduba fornecia a embarcação para meu transporte até o local. Eu ia num domingo de cada mês e numa vez chorei muito durante a viagem, porque o bardo não tinha boia, o céu estava muito preto e tive medo do barco virar com a tempestade. Foi uma experiência incrível. Maria do Carmo era líder da Pastoral da Criança na época, e criou um movimento na comunidade com outras mulheres e conseguiram fundar uma escola municipal no local, possibilitando que os estudantes se formassem até o último ano do ensino fundamental. Depois, eles iam para Manaus ou para Iranduba fazer o ensino médio e faculdade e quando os estudantes se formavam, iam ocupando os cargos de professores na escola. Foi muito triste quando as águas do rio Solimões que avançavam todos os anos e inundava a comunidade, começaram derrubar os barrancos, avançando sobre a comunidade. Aí, foi embora o campo de futebol, as casas e a escola também. Quando o fenômeno das terras caídas começou a avançar, fizemos um projeto para aquisição de um terreno para que todas as famílias ficassem juntas em terra firme e um grupo, com o apoio do deputado José Ricardo (PT), conseguiu. Hoje, há duas comunidades em Iranduba que abrigam as famílias de agricultores e uma delas se chama Novo Catalão. Num dos momentos mais drásticos do deslocamento, um dos barcos em que as pessoas iam com tábuas, telhas e outras coisas afundou de tão pesado que estava e algumas famílias perderam tudo. Nessa época, a filha da Maria do Carmo, a Reuly, que era uma das antigas estudantes e que já tinha formação em serviço social, deu um grande apoio ao grupo. Vários dos agricultores remanescentes desse grupo atuam com agricultura orgânicas. Uma das mulheres, a Elza e a Valda, eu encontro nas feiras de orgânicos de Manaus. Uma delas acontece às quintas-feiras na Associação de Servidores do INPA, no conjunto Morada do Sol, depois das 16:00. A outra acontece no segundo sábado do mês. .no Musa do Largo São Sebastião. Também tem uma no estacionamento do Shopping Ponta Negra às quartas-feiras à tarde. Nádia Vettori voltou para a Itália depois de mais de 40 anos no Brasil. Se quiser saber um pouco mais sobre essa história do povo da Costa do Catalão, leia: o artigo: https://amazoniareal.com.br/da-italia-para-o-amazonas-nadia-vettori-na-missao-da-pastoral-da-crianca-de-transformar-vidas/
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