CRÔNICAS

You are my sunshine, Ted Kennedy e Anibal Beça

Em: 30 de Agosto de 2009 Visualizações: 9405
You are my sunshine, Ted Kennedy e Anibal Beça

Tive, ontem, um sonho estranho. Eu era senador. Durante uma sessão solene, subo à tribuna vestindo trajes bizarros: calça e camisa listrada, um modelito Tinho, de ‘A grande família’. Na cabeça, levo enrolado um turbante vermelho, igual ao do Opash Ananda, da telenovela Caminho das Indias, no casamento de sua neta com aquele menino debilóide. Pego o microfone e começo a cantar para um plenário quase vazio:

- You are my sunshine, my only sunshine; you make me happy, when skies are grey.

De repente, sou interrompido por aplausos cúmplices do senador Suplicy e de uma senadora, a Cleomar Feitosa, minha ex-professora de Canto no Instituto de Educação do Amazonas – naquela época havia ainda espaço para a música nas escolas. A senadora Cleomar pede um aparte:

- “Nobre senador, vá cantar bem assim lá na bica” – ela me diz.

Em seguida, sobe à tribuna e nós dois, agora juntos, continuamos cantando:

- You´ll never know, dear, how much I love you, please don’t take my sunshine away.

Foi quando o senador Heráclito Fortes (DEM, vixe, vixe), só de cueca, com uma pança indicando uma gravidez de dez meses, me aponta um cartão vermelho. Depois, dedo em riste, berra, olhando para mim:

- “Senador Alfredo Nascimento, cante em português. Em português!”.

A sua voz era gasguita, a voz escarrada e cuspida do Roubério Braga. Respondo no microfone:

- “Não me ofenda! Alfredo Nascimento é a mãe de Vossa Excelência! Exijo respeito. Meu nome é Rui. Rui Barbosa, filho de João Barbosa”.

Acordei suado-suado. Era de madrugada. Anotei num papel tudo o que havia sonhado, para não esquecer. Agora, leio o que escrevi e conto o sonho tal como sonhei. Minto. Dei uma pequena enfeitada. O senador Heráclito, na verdade, me chamou de Ted ou Fred, mas eu resolvi colocar Alfredo Nascimento na jogada para rimar.

É isso que dá ver televisão antes de dormir! Por causa do sonho, passei o dia inteiro, já acordado, com a música martelando na minha cabeça, como uma chuva fininha e persistente ou como uma serenata de mosquito.

No trânsito, na ponte Rio-Niterói, lá vem a música beliscando meu ouvido, dessa vez na versão de Ray Charles: “The other night, dear, as I laid sleeping, I dreamed I held you by my side”. Entro na sala de aula. Olho meus alunos. A música continua tocando dentro da minha cabeça: “When I awoke, dear, I was mistaken, and I hung my head and cried”. Isso, o dia in-te-ri-nho, a música me perseguindo. Uma doce perseguição.

De manhã, logo que acordei, duas noticias. A primeira está no jornal: a última música que o senador Ted Kennedy cantou antes de morrer foi “You are my sunshine”. A segunda vem pela internet, um e-mail de Manaus, do Betão Blue Birds, chega como um soco no peito: o poeta Aníbal Beça morreu. Conto o sonho a uma das minhas irmãs que foi colega do Aníbal, no Colégio de Aparecida, e ela me diz que ele gostava de cantar: You are my sunshine. Quanta coincidência!

Deixo a outra metade da coluna para Sérgio Freire de Souza, professor da UFAM. Ele escreveu um texto, não publicado em meio impresso, com considerações sobre Aníbal Beça, que refletem o sentimento de muita gente. Ai vai.

Aníbal Beça, o poeta

"Hoje se foi o Aníbal. Sempre gostei da poesia dele. Desde quando a conheci, nos anos oitenta, em uma aula de literatura amazonense na faculdade. Depois, nesses ziguezagues da vida, convivi profissionalmente com ele, quando foi Presidente do Conselho de Cultura da Prefeitura de Manaus, na época em que Manaus tinha governo. O Conselho era ligado à Secretaria de Educação, da qual eu era subsecretário. Vez por outra me reunia com o poeta para tratar de coisas burocráticas. Ou nem tanto. Suas conversas de poeta desburocratizavam a vida, paralisavam o dia, me anestesiavam do corporativismo sufocante da classe. Gordo daquele jeito, Aníbal era de uma leveza…

A admiração pelo escritor, que ganhou vida concreta nessa breve convivência, virou respeito mútuo e um carinho gratuito. Sem muita razão para lhe dar – ele, ao contrário, deu-me sua poesia –, o poeta gostou de mim, gratuitamente, como fazem os poetas. Encontrávamo-nos por aí e sempre com muito afeto nos cumprimentávamos. Passei a receber seus belos poemas como scraps no Orkut, pelo seu perfil hoje cheio de justas saudades. Também os recebia por e-mail. Um deles me tocou sobremaneira. Chamava-se “A primeira falta”. Ela escrevera para sua mãe, dona Clarice, que havia partido.

- Colher de pau / Solitária na parede / Onde os doces da mãe?

A gratuidade do afeto fez com que um dia me ligasse, pedindo meu endereço para me mandar seus livros. Foi em dezembro de 2008. Fiquei envaidecido pela deferência do maior poeta amazonense, para mim sem controvérsias. Recebi os livros com as dedicatórias, cada uma aproveitando o título do livro: “Para o Sérgio Freire, uma incursão à arte oriental pelas Folhas da Selva”, “Para Sérgio Freire, estes 50 poemas escolhidos pelo autor” e “Sérgio querido, eis aqui a Palavra Parelha e outros poemas”. Todos com um desejo também de um  “Natal Feliz”.

Em outro encontro, sugeriu-me que resenhasse os livros em minha coluna de jornal. Nunca o fiz porque quem sou eu para falar da poesia de Aníbal Beça como crítico? Falo como leitor. Falo com sujeito de linguagem tocado pela sua sensibilidade. “Anúncio” é uma obra-prima: “Há um desejo que me faz cantor/ Há uma paixão saída da sua cor/ Há um amor na contramão da dor”.

Nos “50 poemas escolhidos”, Aníbal abre o livro dizendo “Passei a vida inteira com as palavras. Casado com elas”. É isso. Hoje elas ficaram viúvas. Aproveite os doces da mãe, amigo. Porque “há um amor na contramão da dor” que egoisticamente os que ficam sentem. E também “há uma paixão saída da sua cor”.  Ah, dá licença, poeta… Deixa eu me enxerir para falar da minha tristeza:

“Caneta e papel/ Solitários sobre a mesa/ Onde os versos do Aníbal?”…

P.S. – A vida segue. A tristeza provocada pela morte de Aníbal convive com retalhos de alegria: meu sobrinho Pão Molhado, personagem da coluna, vai ser pai. Nem sei se era pra contar, mas o anúncio de um nascimento sempre ajuda a suportar as perdas. Vai nascer um Biscoitinho Molhado para nos alegrar.

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1 Comentário(s)

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Ronaldo De Maria Derzy comentou:
10/08/2017
Convivi muito de perto com Aníbal e Eugenia sua adorável esposa qdo eles cediam seu sítio para a Pastoral da Juventude da qual eu era coordenador no final dos anos 1970. Eram uma espécie de conselheiros para jovens e, o Aníbal, editava um tabloide semanal que era impresso no o Jornal do Commercio ainda ali na Eduardo Ribeiro onde na madrugada de domingo íamos buscar pra distribuir na saída das missas. Poesia feita de grandeza da alma e pq não do corpo
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