CRÔNICAS

O Livro das Línguas: Yaxari Putai Ukanhemo

Em: 12 de Março de 2006 Visualizações: 9044
O Livro das Línguas: Yaxari Putai Ukanhemo
Ixê aikú iké akuntai arama penharã mayé uyukuawa kua yaneenga nheegatu. Asuí ambéu arama mayé yasasaua puxuera tiresewara yaxari putai ukanhemo kua yaneenheega.
- Égua! Que diabo é isso? – pergunta o leitor assustado. Bom, vou logo avisando que estou apenas transmitindo as palavras que ouvi na última quarta-feira, dentro da Câmara dos Deputados, em Brasília, por onde perambulei durante três dias.
Confesso que as palavras “putai ukanhemo”, precedidas de “yaxari”, podiam sugerir que alguém estava xingando a mãe do Roberto Brant (PFL – Vixe! Vixe!) e a sogra do prof. Luizinho (parte podre do PT – Vixe!), envolvidos, comprovadamente, com caixa 2.
Mas não era nada disso. As palavras que escutei não foram ditas no plenário da Câmara para protestar contra a desmoralização da instituição, que absolveu dois deputados corruptos. Elas foram pronunciadas no auditório Nereu Ramos, num belo discurso feito por um índio intelectual do Amazonas, Gersem Luciano Baniwa.
Livro das Línguas
Gersem participou do “Seminário sobre a criação do Livro das Línguas”, organizado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara Federal, por requerimento de dois deputados da parte sadia do PT: Carlos Abicalil (MT) e Paulo Rubem Santiago (PE), em parceria com várias instituições. Uma delas foi o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, responsável pela proteção do patrimônio cultural brasileiro.
O IPHAN já criou quatro livros para reconhecer e valorizar o patrimônio imaterial: o Livro dos Saberes está registrando os conhecimentos e modos de fazer das comunidades; o Livro das Celebrações está inscrevendo as festas populares, religiosas ou profanas; o Livro das Formas de Expressão está destinado às manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e o Livro dos Lugares está documentando mercados, feiras, praças, santuários e outros lugares sagrados.
Agora, o Ministério da Cultura, através do IPHAN, está discutindo a possibilidade de criar um Livro de Registro das Línguas, por meio do qual o Estado reconhecerá como patrimônio cultural da Nação, as mais de 200 línguas faladas no território nacional.
Para discutir os critérios de registro, o seminário convidou linguistas, antropólogos, historiadores e educadores, além de falantes de várias dessas línguas, como o Guarani que é falado em cerca de cem municípios brasileiros, e também em outros quatro países: Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia.
Os castigos
Foi numa dessas línguas – o Nheengatu - que Gersem fez todo o seu discurso, depois traduzido por ele mesmo ao português. As palavras no início deste artigo significam: “Estou aqui para falar brevemente sobre a história da língua Nheengatu e os sofrimentos que passamos pelo fato de termos resistido às tentativas de eliminação dela e de outras línguas”.    
Gersem descreveu os sofrimentos que padeceu na década de 1980. “Naquela época fomos rigidamente proibidos de falar nossas línguas maternas nas escolas-internatos dos missionários. Quem descumpria as ordens era severamente punido e castigado. Os castigos iam de ficar um dia sem comer, permanecer em pé horas e horas no sol quente, trabalhos forçados ou castigos com efeitos psicológicos terríveis”.
Esses últimos – segundo Gersem – eram os piores. Ele contou que foi flagrado falando sua língua materna em vários momentos diferentes. Então, penduraram no seu peito e em suas costas um pedaço de pau pesado e grande com uma corda grossa e uma placa onde estava escrito: “Eu não sei falar português”.
O aluno ficava assim até que descobrissem um novo violador da regra, para quem era passada a placa e assim por diante. ‘ A placa provocava pavor e extremo constrangimento uma vez que na época admitir não falar português, e somente sua língua materna, era sinônimo de ser animal, sem alma, sem educação, pagão e anti-patriótico”.
A resistência
Da mesma forma que Gersem, muitos resistiram e mantiveram seu idioma materno. Graças a isso, a Câmara dos Deputados pode ouvir hoje um discurso em Nheengatu, que foi a língua da maioria dos amazonenses até 1860. Durante dois séculos e meio, cabocos, índios, mestiços, negros e portugueses da Amazônia trocaram experiências e desenvolveram a maioria de suas práticas sociais, trabalhando, narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, fofocando, rindo e se divertindo nessa língua.
O Nheengatu classificou plantas, árvores, ervas medicinais, frutas, animais, barro, água, peixe. Deu nomes aos rios, igarapés, vales, montes e barrancos. Codificou saberes no campo da medicina, da botânica, da zoologia, da religião, da agricultura. Registrou narrativas, mitos, poemas e canções. No começo do século XX, em Manaus, as mulheres ainda embalavam seus filhos na rede, cantando cantigas de ninar em Nheengatu.
Uma dessas canções foi registrada pelo cônego Francisco Bernardino de Souza. Ela pedia: “Acutipuru ipurú nerupecê cimitanga-miri uquerê uaruma”, dirigindo-se a um tipo de mamífero roedor – o acutipuru - que dorme o dia inteiro, depois de passar a noite na farra e na boemia. A tradução diz: “Acutipuru, me empresta teu sono, para eu fazer dormir meu filhinho”.
Ainda hoje o Nheengatu é usado, sobretudo na região do Rio Negro, a tal ponto que a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão realizada no dia 22 de novembro de 2002, a declarou língua co-oficial daquele município.
Túmulo de línguas
Os participantes do seminário foram informados que a cidade de Manaus se transformou no túmulo de muitas línguas indígenas. Provavelmente o último falante da língua baré em território brasileiro morreu na periferia de algum bairro da capital amazonense. E isso porque os índios que migraram para cá tiveram suas línguas discriminadas.
Apesar disso, a Língua Geral ou Nheengatu continua sendo falada hoje em centenas de barracos de Manaus. Num recente levantamento realizado pelo Departamento de Gestão Educacional da Secretaria Municipal de Educação e Cultura foram localizadas nove comunidades na zona rural de Manaus, falantes de Nheengatu, e cinco comunidades urbanas em cujas residências se falam línguas indígenas.
Em plena sintonia com o Ministério da Cultura, o atual prefeito de Manaus Serafim Correia, seu secretário de Educação José Cyrino e o subsecretário, Sérgio Souza, que é doutor em Linguística, decidiram que Manaus não vai mais ser sepultura de línguas. Por isso, estão desenvolvendo um projeto original e pioneiro de escola indígena urbana diferenciada, conscientes daquilo que Gersem Baniwa disse no final do seu discurso: “toda vez que uma língua morre, é uma parte da humanidade e do mundo que morre, tornando o mundo mais fraco, mais feio e mais pobre”.

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2 Comentário(s)

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Gangadhar Abhyankar comentou:
18/08/2014
em minha idioma Marathi--arama=aaraam=rest-leisure\
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Jerfferson Araújo comentou:
18/08/2014
"Por isso, estão desenvolvendo um projeto original e pioneiro de escola indígena urbana diferenciada (...)" Vão criar escolas para o ensino do nheengatu?
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