CRÔNICAS

Os ladrões de ortografia: o "erro" de português

Em: 11 de Novembro de 2007 Visualizações: 22759
Os ladrões de ortografia: o "erro" de português

Ignoro se os deputados Paulo Maluf (SP) e Jader Barbalho (PA), os senadores Romero Jucá (RR) e Renan Calheiros (AL), o ex-governador Amazonino Mendes (AM) ou seus coleguinhas sabem grafar corretamente ‘empório’ e outras palavras. Mas se não sabem, devem contar, certamente, com assessoria competente, pois habitualmente não cometem deslizes nessa área. Por isso, escaparam, até agora, das malhas da Justiça, comprovando que a gramática é um instrumento de poder, usado para discriminar a plebe ignara e proteger a elite, não necessariamente intelectual, mas política e empresarial do país.

Olha só o que aconteceu! Nessa quinta-feira, um Fiat Doble estacionou frente a um condomínio de luxo, na Zona Oeste de São Paulo. Não havia dúvidas de que ia entregar cestas de natal. Afinal, transportava panetones e vinhos. Na sua porta, bem como nas camisas dos entregadores das cestas, estavam pintados o nome e a logomarca de conhecida empresa especializada em alta gastronomia. A polícia, porém, desconfiou que o veículo era clonado, porque em vez de ‘empório’ estava escrito ‘impório’. Prendeu os seus ocupantes.

Eram três assaltantes com ferramentas usadas para arrombar cofres. Lá fora, em outro carro, foram presos quatro homens, fortemente armados, com dois fuzis, uma metralhadora e duas pistolas, além de radiocomunicadores, coletes à prova de bala e camisetas similares às da Polícia Federal. Todos eles armados com armas de fogo, mas desarmados de vogais.

O delegado Ruy Ferraz, do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (DEIC) declarou ao Jornal Nacional: “o erro de português, fundamental para a prisão deles, nos deu a certeza do crime”. Ou seja, para ele os criminosos só foram presos porque cometeram, antes de tudo, um delito ortográfico. Caso contassem com assessoria lingüística, como certos políticos, teriam tido êxito no assalto e ficariam impunes. Confundindo domínio de regras da ortografia com capacidade de raciocínio, o delegado acrescentou: “os oito homens podem ser experientes, mas pecaram pela inteligência”

A fala do delegado revela preconceito lingüístico. Ele acha que escrever ‘impório’, além de errado, denota burrice. Ora, os ladrões apenas fizeram uma transcrição fonética correta da palavra, tal como se usa no linguajar popular. No século XVI, quando não havia normas padronizadas, Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta, grafou ‘impório’ Como estamos no século XXI, o ‘delito’ dos assaltantes foi escrever como se fala, ignorando normas ortográficas sacralizadas pela escola, da qual foram excluídos, mas que foi freqüentada pelas elites. Afinal, pãos ou pães é questão de opiniães.

A neutralização do ‘e’ em ‘i’, da mesma forma que a troca de ‘l’ em ‘r’ nos encontros consonantais, costuma ser considerada como ‘atraso mental’. No entanto, a História mostra que não é ignorância escrever pobrema, chicrete, praca, pranta, Cráudia, Frorianópolis. 

Marcos Bagno, em seu livro sobre “preconceito lingüístico”, esclarece que se trata de um fenômeno fonético, presente na formação da língua portuguesa. O poeta Camões, pai do português clássico, cansou de escrever pranta, frauta, frecha. Seguindo essa regra, ficaram consagradas na norma culta da língua portuguesa palavras como brando, cravo, dobro, escravo, fraco, obrigar, praga que vieram do latim blandu, clavu, duplu, sclavu, flaccu, obligare, plaga.

A linguagem popular, por razões ideológicas e políticas, foi sempre estigmatizada como sendo uma “mutilação” da “verdadeira língua”. Na Amazônia, no século XIX, os bilhetes escritos durante a Cabanagem, foram apresentados nos processos criminais como “prova dos instintos criminosos da ralé semi-nalfabeta”. Um deles, redigido por um chefe cabano, exigia que o presidente da província libertasse seu irmão que estava preso:

“E se V. Exa. responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e otros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de  sinco mil Ome y não dexar Pedra sobre Pedra”.   

Embora a escrita seja uma tentativa de representação da fala, não existe nenhuma ortografia, em qualquer língua do mundo, que consiga representá-la com fidelidade. A língua escrita é convencional e, como sinaliza Bagno, “exige treinamento, memorização, exercício e obedece a regras fixas, de tendência conservadora, além de ser uma representação não exaustiva da língua falada”. Os nossos companheiros assaltantes, sem casaca, não foram devidamente treinados, ao contrário dos senadores e deputados. Por isso, foram presos e punidos.

Esse crime evitado pela polícia paulista lembra velha piada contada com muita graça por minha amiga lingüista Ruth Monserrat. Um gato faminto correu atrás de um rato, que se escondeu num pequeno buraco. O bichano ficou lá fora, de campana, vigiando. Sua presa, lá dentro, rezando por um milagre. De repente, ouvem-se latidos. “Graças a Deus, chegou o cachorro. O gato já foi embora. Posso sair” – suspirou aliviado o ratinho. No que sai – creu! - o gato o devorou, sentenciando depois, enquanto lambia as unhas: “É impressionante! Hoje, quem não for bilíngüe, não consegue sobreviver”.

Imagino um ladrão de casaca, desses que pululam por aí, vendo no Jornal Nacional a notícia do assalto malogrado. Entre uma e outra dose de uísque, ele sentencia:

“É impressionante. Hoje, quem não domina regras de ortografia, não consegue mais roubar impunemente”.

No caso citado, os ladrões planejaram tudo direitinho: imitaram o carro de entrega, se fantasiaram com o uniforme da empresa, mas esqueceram o fundamental: a forma de escrever das ‘zelites’, de seus assessores e advogados, é o que permite apagar as impressões digitais, digo, lingüísticas, de um crime.

Esses rastros deixados pelo uso da língua – que não aparecem na escrita dos que têm o colarinho branco e a alma suja – é que denunciaram os bandidos. Imagino a mãe de um deles, numa visita à cadeia, recriminando:

“Você não ouviu meus conselhos. Sempre te disse: estuda, meu filho, te apropria da fala deles, senão tu não vais vencer na vida”.

O  surpreendente, porém, não é que ladrões de extração popular cometam atentados contra a ortografia, mas que os policiais, em geral oriundos da mesma classe social, sejam capazes de perceber isso e policiar a linguagem.

Aliás, sobre policiamento da linguagem, aconteceu recentemente fato chocante. O jornalista Fabrício Azevedo, do STJ, queria falar com o atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Alberto Menezes Direito, que entrava no Tribunal. Chamou:

-“Meritíssimo!”.

Nada. O magistrado continuou andando.

“- Ministro!”.

Ele não ouviu. Então Fabrício gritou:

“Ei! Psiu! Psiu!”.

A comunicação funcionou. O ministro ouviu muito bem e virou a cabeça, mas se sentiu desrespeitado. Abriu processo administrativo contra o jornalista por mau comportamento. A investigação está sendo feita: depoimentos, testemunhas, acareações e bota latinorum nisso.

Acostumados aos rapapés de sua hierarquia e vaidoso pra cacete, o ministro Carlos Alberto Direito quis levar para a vida real as distâncias sociais do seu cargo. O jornalista, que partiu do pressuposto de que todos somos iguais, cometeu delito na linguagem falada comparável ao ‘erro ortográfico’ dos assaltantes paulistas. Como os bandidos, ele vai pagar caro por seu delito lingüístico.

P,S,  - Postado em 16 de abril de 2018 noticia de que bandidos clonaram viatura da PM para assaltar Depósito das Lojas Americans em Seropédica, na Baixada Fluminense. Foram barrados pelo porteiro que desconfiou de várias irregularidades, entre as quais o fato de que na viatura clonada havia um deslize de concordância com a inscrição na porta: VIA EXPRESSAS. Definitivamente os nossos Programas de Educação de Jovens e Adultos não estão cumprindo a função de capacitar nossos meliantes para que desempenhem suas atividades com eficiência. 

https://www.pressreader.com/brazil/o-dia/20180416/281655370662027

 

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10 Comentário(s)

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Renato Amram Athias comentou:
22/03/2024
Super! Este é um bom debate…
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Loretta Emiri (via FB) comentou:
22/03/2024
A Torre de Babel muito me assusta! Mas adoro (e valorizo) a diversidade linguística.....
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Marta Maria Azevedo comentou:
20/03/2024
Perfeito!!! Sou sempre pela flutuação ortográfica!!!
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João Paulo Ribeiro comentou:
20/03/2024
O nhengatu da regiao usa o ç para iniciar palavras
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Taquiprati comentou:
26/05/2021
"Erros" de português foram peças-chave para a descoberta de um falso médico, que atuava em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Engenho Novo, no Rio de Janeiro. O farsante foi descoberto após escrever de forma incorreta em um receituário, além de demonstrar não ter conhecimento acerca da forma de utilizar o sistema eletrônico de prescrição de medicamentos. Noticia em plena pandemia (26/05/2021) Aleksandro Gueivara foi contratado pela Organização Social Viva Rio como médico plantonista e chamou atenção dos demais profissionais que atuam na unidade de saúde após uma série de "erros" de Português, que agrediam a norma padrão, como a grafia da palavra potássio, escrita por ele como “potacio”.
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Lincoln Höltz (via FB) comentou:
25/03/2013
É, Babá... Se, como os chineses, usássemos ideogramas e não sinais fonéticos, estaríamos livres disso... Uma vez, quando ainda trabalhava agenciando navios cargueiros, em Paranaguá tive que apanhar três comandantes em seus navios e trazê-los ao escritório. Um chinês, um japonês e um coreano, sujeito mais velho. No caminho de volta, fiquei intrigado por ouvi-los dar altas gargalhadas enquanto escreviam num papel que passavam de um para o outro. Perguntei o que era aquilo e o japonês, do navio da Mitsui O.S.K. Lines, me explicou: apesar de falarem línguas completamente distintas todos estavam escrevendo com os caracteres chineses e se entendendo perfeitamente. O chinês porque os usava sempre, o japonês porque era da escola antiga e podia escrever só usando "kanji" e o coreano, mais velho, ainda era do tempo do domínio japonês na Coréia e havia aprendido japonês (e "kanji") a fundo, na escola... Achei estranhíssimo, isso, e eles me deram um exemplo. Escreveram um caractere chinês e cada um leu na sua língua. Sons completamente diferentes, mas significado idêntico... Quanto ao novo método “ortográfico” da polícia para descobrir e colocar meliantes no xilindró, pra prender os grandes, então, bastaria proibir revisores ortográficos nos gabinetes de políticos e administradores públicos em geral. Novamente, não haveria cadeia que desse conta, por este Brasil a fora...
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Lincoln Höltz comentou:
26/03/2013
É, Lucídio... Estes ladrões de paletó e gravata, formados nas faculdades, que predominam nas altas negociações públicas ou privadas, são "supostamente" (termo muito usado pela imprensa para fugir de processos judiciais) sócios das autoridades (que estariam) encarregadas de encarcerar criminosos... Que fazer... Mas o mais estranho é a indiferença da sociedade, do povo! Eu penso assim: a riqueza de uma nação é quantificável. Temos um tal de PIB, que representa a soma de todos os bens e serviços do país. É um "bolo", é um "x". Se alguém mete a mão ilicitamente nesse "bolo", está roubando DE ALGUÉM! No caso das verbas públicas, está roubando de todos que contribuem para esse "bolo": nós, o povo. E O POVO DEIXA!!!!!!!! O povo se deixa ofuscar pela miragem dos gols nos futebois, dos beijos e intrigas nas novelas, pela "poesia bialana hipócrita" dos big brothers, pelo calor dos energéticos e outras drogas misturados com álcool nas tenebrosas baladas funkeiras e perdoa o roubo do seu suor, do seu sangue! Isso é um delírio, é um absurdo medonho!!!!!!!!!
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Lucidio De Oliveira Pereira comentou:
25/03/2013
coitado esta por fora, ladrão no Brasil usa palitó e gravata e na maioria das vezes tem faculdade ...
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Alda Jupira comentou:
18/05/2012
Gostei muito ,esta cronica é mais pura demonstração do nosso pedantismo ,alguns jornalistas vivem metendo o malho no Lula por que ele fala errado,no fundo o que se pode perceber é o preconceito linguístico,daqueles que inescrupulosamente se sentem donos de todo o poder.
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Mariana comentou:
18/03/2012