CRÔNICAS

Berinho, o flautista e a política cultural

Em: 29 de Junho de 2008 Visualizações: 11640
Berinho, o flautista e a política cultural

... pois é, rapaz, e o Berinho, einh! Alguns leitores andam reclamando que a coluna há bastante tempo não implica com o Secretário de Estado de Cultura do Amazonas (SEC), Robério Braga, conhecido nas paradas como Berinho. Uma leitora, Adelaide Pessanha, cobrou:

- “Você, que odiava o cara, de repente ficou calado. O que aconteceu? O Taquiprati também se vendeu? Ou está com medo?”.

O também é ótimo (o grifo é meu). Publico aqui a resposta enviada para o e-mail dela:

“Prezada Adelaide, você está equivocada. Não odeio o Berinho, não tenho qualquer motivo para isso, não o conheço pessoalmente, ele nunca me fez qualquer dano ou desfeita. A bronca que tenho não é com o indivíduo, a quem desejo, sinceramente, tudo de bom, e não digo isso para parecer um cara bonzinho, sai do fundo do meu coração. É com o homem público, que tem uma visão estreita e limitada da cultura e da Amazônia. Vou tratar disso na coluna do próximo domingo. Abraços”.

Conforme o prometido, aqui estou me explicando para a Adelaide e para alguns eventuais leitores. O objeto da crítica ao eterno Secretário de Cultura reside nas políticas culturais que ele vem executando no Amazonas durante vários governos e a forma como vem gastando o dinheiro público. Para o Berinho, cultura é pirotecnia, ornamento, verniz. Ele só gasta grana com o enfeite brilhoso, o fogo de artifício, o colunismo social.

Essa atuação da SEC me fez passar, na qualidade de amazonense, muita vergonha, num recente congresso sobre o sistema nacional de bibliotecas públicas, realizado em São Paulo. A conferencista informou que entre os estados brasileiros carentes de bibliotecas, o Amazonas é o campeão. Quase 50% dos municípios do Amazonas não contam com uma biblioteca, sequer com uma prateleira de livros. Francamente: nem o Haiti submetido à extrema pobreza. 

No entanto, segundo este Diário do Amazonas na nota intitulada ‘Mordomias’, a SEC está pagando 604,6 mil para a Uatumã Empreendimentos Turísticos Ltda. por hospedagens em hotéis, barcos de luxo, pousadas e casas, em Parintins, incluindo alimentação, para jornalistas, artistas, autoridades, jurados, convidados oficiais e técnicos que participam do Festival de Parintins.

Quantas bibliotecas poderiam ser construídas com essa grana? O Berinho organiza o tal do Amazon Film Festival, o Festival Amazonas Jazz e outros que tais. Entre os seus convidados, algumas pessoas sérias, talentosas e trabalhadoras – é verdade - mas de contrapeso uma cambada de vagabundos, cujo único mérito é ter participado do Big Brother Brasil. O pobre contribuinte amazonense, que não conta sequer com uma prateleira de livros, paga hotel cinco estrelas, uísque e tartarugada pra essa gente.  

Confesso ainda que me incomoda no homem público Berinho a sua radicalidade. Ele é um extremista, um xiita, no que diz respeito à subserviência ao governante de turno. Não transige jamais. Não importa quem é o governador, pelo simples fato de sê-lo, merece o puxa-saquismo e a devoção do nosso herói. Ao contrário do anarquista espanhol, Berinho grita: “Hay gobierno? Soy a favor”.  Ele entende que a Secretaria de Cultura existe para ser fiel ao Governo e não ao povo, ao palácio e não ao tapiri.

Daí, Berinho generaliza sua posição. Se ele, Berinho, serve a qualquer governo, a obrigação de todos os produtores culturais é também fazer o mesmo. Durante sua gestão na SEC, ao longo de sucessivas administrações, ele tem procurado servir de ponte, de elo, para essa operação de cooptar artistas, músicos, escritores, jornalistas, poetas, pintores. Felizmente alguns resistem bravamente.

A carta de Adelaide acabou me motivando a traduzir a letra de uma música de Georges Brassens, intitulada ‘Le petit joueur de flûteau´, com a qual venho namorando desde 1970. Não é bem uma tradução, mas uma versão livre. Nela, o cantor e compositor francês discute a relação do artista com o Poder. Afinal, qual o compromisso social do artista e do intelectual? A quem ele deve servir?

Acho essa canção tão comovente que gostaria de compartilhar contigo, leitor (a). Se conseguir transmitir dez por cento da emoção que senti, e contribuir para refletir sobre o papel da arte e do artista na sociedade, já estamos no lucro. Ai vai a versão que adaptei.

O FLAUTISTA
O tocador de flauta, modesto jogral,
levou sua música ao castelo feudal.
Maravilhado com tão bela canção,
o rei lhe ofereceu emblema e brasão.
Majestade - disse o flautista pobre -
não quero ser fidalgo nem nobre.
Com um brasão em minha melodia,
meu do-re-mi ficaria com afonia.
Meus conterrâneos diriam de repente:
- Nosso flautista traiu sua gente.
 
II
Não iria mais querer acender vela
pros santinhos da nossa capela.
Eu só rezaria – que vexame! -
lá na Catedral de Notre Dame.
No campanário da nossa igrejinha,
o sino viraria campainha.
Com um bispo na minha clave de sol,
eu desafinaria sustenido e bemol.
E todo mundo falaria: - Você viu?
Nosso tocador de flauta nos traiu.
 
III
Trocaria minha cabana de palha
por castelo com fosso e muralha
E o quartinho onde durmo feliz
Pelos aposentos da imperatriz.
No lugar do colchão de capim
Um leito de baldaquim e cetim.
Com um castelo na pauta musical,
minha toada soaria artificial.
Os camponeses diriam, de novo:
- O flautista traiu o seu povo.
 
IV
Teria vergonha de meus ancestrais,
de minhas origens e de meus pais.
Falsearia uma linhagem aristocrática
com árvore genealógica emblemática.
Repudiaria o sangue da minha veia.
Renegaria o povo da minha aldeia.
Com um sangue azul tão dissonante
minha cantiga se tornaria pedante.
E os aldeões diriam com lucidez:
- o flautista nos traiu outra vez
 
V
Um duque, um conde, um marquês,
não podem ter um filho camponês.
Seria impossível me casar por amor
com minha amada, botão em flor.
Meu casamento seria uma barganha
com a filha do rei da Espanha.
Com uma princesa na minha modinha,
meus versos só louvariam a rainha.
Plebeus e servos diriam: - No fundo,
o flautista traiu o nosso mundo.
 

VI
Então, o flautista, humilde jogral,
Disse ‘NÃO’ ao castelo feudal.
Sem escudos, honrarias e glória,
retornou ao lugar da memória:
choupana, aldeia, campanário,
família, afetos, relicário.
Agora nenhum aldeão diz
que o flautista traiu sua raiz
E Deus reconhece como filho seu
aquele bardo que não se rendeu.

 

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4 Comentário(s)

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Soraia Magalhães comentou:
19/07/2012
Nossa, você escreveu isso em 2008? As coisas não mudaram nada...a Biblioteca Pública do Amazonas fechou em 2007...passou 2008...2009....2010...2011...2012....e se duvidar chegaremos em 2013 sem providências...o que será que há por trás desse descaso todo? De acordo com dados publicados na imprensa a obra que foi orçada em R$ 2.755.435,33 milhões, chegou ao valor final em R$ 4.105.825,94 milhões....Agora abriram nova licitação para reformar o telhado...e então? Por quanto sairá essa reforma? E por que será que existia tanto silêncio envolvendo o assunto? Boa crônica, importante e atual a reflexão mesmo tendo passado tanto tempo. Belíssima letra a tradução da história do Flautista!
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htrgzezgop comentou:
08/12/2010
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whyzqyn comentou:
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