CRÔNICAS

Tio Eduardo, garimpeiro de lembranças

Em: 25 de Outubro de 1990 Visualizações: 9008
Tio Eduardo, garimpeiro de lembranças

O passado é o que não passou do que lhe passou.

João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

No seu apartamento, em Niterói, Eduardo Bessa, ex-delegado do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC) no Amazonas, na década de 1950, comemora agora 78 anos, justamente no Dia da Criança. No centro da mesa, um bolo com velinhas. Semiparalisado em uma cadeira de rodas, mantém sua lucidez e bom humor. A cabeça, coberta de algodão, balança de um lado pro outro, seguindo instruções de exercícios recomendados pela fisioterapeuta. Os olhos se fixam no relógio, a cada minuto, com obsessão. Vigiando o tempo que se esvai?

Lembrará ele do seu pai, Manuel Tibúrcio Bessa, de Limoeiro do Norte (CE), e da mãe Maria Elisa Queiroz, de Pau dos Ferros (RN), que fugiram da seca para o Amazonas no período áureo da borracha?  O casal teve uma penca de filhos. Eduardo, que é o mais velho, conheceu Zulita Souto, uma menina, menor de idade, que tocava piano dentro de um seringal de Sena Madureira, no Acre. Casaram, tiverem nove filhos. Viveram em Manaus, no Centro e no bairro de São Jorge. Viúvo e doente, em Niterói, para onde mudou, festeja mais um aniversário cercado por filhos e sobrinhos.

A família canta Parabéns pra você, com-quem-será que o Dudu vai casar, é big-é big-é big... Animado com a hora do recreio, Eduardo entoa, sozinho, alguns cânticos religiosos que a memória vai cavar lá no fundo do poço. Começa com o hino do Apostolado da Oração:

- Queremos Deus, homens ingratos, passa pelo hino guerreiro “Levantai-vos, soldados de Criiii-isto, Eia! Sus! Nas sendas da glória” e termina com o “Virgem Mãe Apareciiii-ida, estendei o vosso olhar”.

Os insensatos zombam da fé e erguem-se em vão contra o Senhor? Eduardo, da fé não zomba, mas, espírito gozador - marca registrada de toda uma vida – enriquece o hino das Filhas de Maria:

 - “Eu prometi”... Aí ele acrescenta por sua conta: “Mas não cumpri...”.

Retoma a letra original:

Fiel serei”... Completa:  “Isso eu não sei...”. 

Depois, muda de repertório e ataca com músicas profanas. Escolhe ‘Súplica’, uma valsa de Orlando Silva, o cantor das multidões:

- O aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim.

Ele faz um biquinho na boca, entortada para o lado direito não atingido pela paralisia, e ensaia outra música, de autor anônimo, que deliciava os sobrinhos:

- Sonhei, com a imagem tua, abri a porta e caguei na rua. Caguei, caguei sem medo, não tinha papel limpei o (assovio) com o dedo, e um guarda que ia passando quis me prender por estar cagando, ainda trago, por testemunha, um bocadinho de merda no cantinho da unha.

Basta falar ou cantar merda que todo mundo ri. Ele gosta dos aplausos. Encerrada a sessão musical, fantasmas da infância distante começam a boiar com pedaços soltos de lembranças, fragmentos de frases, ecos de vozes distantes, figuras familiares, sons, cores, cheiros e impressões de um passado que ele traz para o seu presente. Não quer que o tempo morra.

A morte do tempo

Eduardo, paradoxalmente, tem de matar o tempo para mantê-lo vivo. Faz um biquinho que o torna muito parecido a Jean Gabin. Lembra o grito de seu tio Eustáquio, que vendia porco no Mercadão Adolpho Lisboa e, com um tabuleiro na cabeça sobre uma rodilha de pano gritava pelas ruas de Manaus:

- Miudeiiiiiiiiiro. Olha o miúuuuudo!

A nova geração presente no aniversário, netos e até bisnetos, nunca ouviram falar num tal Citonho, relembrado agora pelo velho Eduardo através de um grito:

- Catraieeeeeiro! O Citonho.

O Citonho devia ser possivelmente um dos catraieiros que ligava o bairro de São Raimundo, onde Eduardo nasceu, ao bairro de Aparecida. Será? É quase impossível identificar os personagens que vão e vem nas recordações, vestígios de um passado sem pontes, que teima em fugir e não se deixa agarrar.

Mas Eduardo continua suas escavações. Os personagens surgem, em forma cronológica, desfilam pelos labirintos da memória através de frases descontextualizadas. Ele olha o relógio: o tempo está se escoando?

- Pedro, Paulo, Kid! Pra dentro, meninos. Saiam do sereno!

Nesse momento, Eduardo parece assistir a algum entardecer melancólico em São Raimundo, no ano em que Lenin, hoje embalsamado, dirigia a revolução russa, hoje embalsamada. Uma foto de 1917 passa de mão em mão. O Eduardo, 78 anos, reconhece nela o Eduardo de cinco anos, vestido com um traje de marinheiro, ao lado do seu irmão Vicente, que morreu aos sete anos de idade.

- O Vicente morreu empanzinado com farinha. Foi a tia Tecla que deu pirão fermentado pra ele comer.

Os olhos continuam percorrendo a foto, como num filme de Saura e se detém na mulher do Josué, de pé, atrás do Vicente. Eduardo olha-que-olha, enigmático:

- O tio Josué tinha uma canoa. Fabricava tamanco. Vivia zangado. Sua benção, tio Josué? Vá tomar benção do diabo.

Eduardo conta a história uma, duas, dez vezes, à saciedade, tentando congelar, através da repetição, aquela imagem, naquele momento, e paralisar o curso ininterrupto da vida. Improvisamos, então, um pequeno teatro.

- Pra dizer que eu sou o Eduardo e o senhor é o tio Josué. Eu peço: Sua benção, tio Josué!

- Vá tomar benção do diaaaaabo – responde Eduardo, gozador, imitando a entonação rouca do seu falecido tio Josué. Algumas frases isoladas, aparentemente desconexas surgidas sabe Deus através de qual associação, são enunciadas aqui e ali.

- Efigênio Sales morreu em 1939.

E daí, Dudu? Ele consulta o relógio pela milésima vez. O ponteiro dos segundos, irrequieto e nervoso, avança sempre, sempre pra frente:

- Cadê o Pedro Queiroz e o tio Doca? O Raimundinho Bessa já telefonou?

As lembranças agora voam como um passarinho, livremente, sem compromissos, saltitando de galho em galho:

- O alto-falante da Casa 22 Paulista, lá na Rua da Instalação. Cheiro de tripa fresca de boi lá no Curro. Dei de presente um relógio Sima pra Irmã Conceição, quando ela entrou no convento. Bati muito na Rosa, porque ela implicava com a Elisa.

Memória de bubuia

Detalhes de uma Manaus que se foi, com seus casarões e sobrados de azulejos e suas relações familiares sepultadas são avivados pela fotografia, emergem e ficam de bubuia, como esta descrição do interior de uma casa no bairro de São Raimundo, pertencente a um vizinho, um certo Comandante Alexandrino. Eduardo nos leva pelo corredor e nos convida a entrar no salão, a olhar pela janela com balcão, a deslizar pela varanda gradeada, a percorrer os quartos, a avaliar o mobiliário e a descer até um porão alto.

- Eu ia sempre passar o dia na casa do Comandante Alexandrino. Tinha um quintal grande, muita fruta. Cacho de banana São Tomé no estrado, no canto da cozinha, ao lado do pote.

Depois de um longo intervalo, em que dormitou, fala pensativo:

- Dodora, cadê a tia Serina, minha madrinha?

Nem Dodora, nem ninguém na sala suspeita quem é tia Serina. No máximo, todos se lembram do tio Cyrino, o que não é a mesma coisa. Depois de ressuscitar todos os bucheiros de São Raimundo e de inventariar os personagens familiares, Eduardo dá por cumprido o seu trabalho de garimpeiro de lembranças. De boa vontade, responde a última pergunta da filha fofoqueira:

- Papai, qual é a sua nora mais ingrata?

- Rosileeeene – ele responde em cima da bucha, com uma resposta treinada. Um acontecimento vivido é limitado, se acaba ali mesmo, mas um acontecimento lembrado é infinito, sem limites, porque contém a chave para tudo o que veio antes e depois. Os dias, os meses e os anos costumam ressuscitar sob a forma que adquirem no momento da evocação – nos ensina Walter Benjamin.  A paciência do Eduardo é, no entanto, finita. Já cansado, ele começa a fingir de surdo e a embaralhar as respostas.

- O senhor sabe quantos netos têm?

- Um metro e sessenta e dois.

Fim de papo. O velho Eduardo olha o relógio uma vez mais e fecha os olhos. Sonha, talvez com um relógio sem ponteiros, que não faz tic-tac, mas reproduz a batida de um coração – tuc, tuc - igual à cena do filme Morangos Silvestres. No filme de Bergman, o personagem – um professor aposentado – fica desnorteado, porque todos os relógios da cidade estão sem ponteiros. Impossível medir o tempo.

A festa deixa Dudu extenuado. Lá vai ele, em sua cadeira de rodas. Lá vai ele, o dono de um tempo sem pressa, lá vai ele dormir, carregando pedaços de todos nós, retalhos de uma história anônima que não figura nos registros oficiais. Lá vai ele, bonito como um passarinho com suas plumas brancas, feliz porque a família decidiu poupá-lo. Ninguém contou pra ele sobre a morte da irmã, nem sobre os resultados da última eleição no Amazonas. Prá quê?

Obs. – Eduardo Bessa faleceu em Niterói (22/06/1992), quase dois anos após a comemoração daquele seu aniversário.

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