CRÔNICAS

Quem é, afinal, El Nino?

Em: 01 de Novembro de 1997 Visualizações: 7410
Quem é, afinal, El Nino?
No dia em que caíram os índices da Bolsa de Hong Kong e da Capanga de Manaus, o Senhor apareceu ao padre Humberto Guidotti, quando ele descansava debaixo da última mangueira que sobrou em frente à Santa Casa de Misericórdia. O padre levantou os olhos e, apesar de toda a fumaceira, viu a imagem divina - que felizmente veio com luz própria - cercada por dois anjos: um querubim e um Serafim. Prostrou-se por terra e disse:
- Vou buscar um pouco de água para lavar vossos pés. 
Entrou e pediu à irmã Giustina:
- Prepara farinha de mandioca e faz beijú.
- Ai, meu Deus, a Cosama cortou a água, a luz foi embora - queixou-se a freira.
Correu em seguida ao mercado. Os jaraquis haviam apodrecido no freezer descongelado. Serviu sardinha em lata com baião-de-dois. Preparou um vinho de buriti quente, pois gelo não havia. Ofereceu tudo aquilo aos anjos. Serafim pediu pimenta murupi. O querubim, malagueta. Comeram a gororoba e saíram em direção ao Palácio do Governo.
O Senhor, então, abriu o jogo ao padre Guidotti:
 - Acaso poderei ocultar-te o que vou fazer? Tal qual Sodoma e Gomorra, é imenso o clamor que se eleva de Manaus. O seu pecado é muito grande. Muita corrupção. Muita gente roubando, enrolando o povo, explorando-o, oprimindo-o. Eis que é chegada a hora do ajuste de contas. Estou mandando os anjos conferirem. Se for verdade, ai de ti, Manaus! Os quatro cavaleiros do Apocalipse, cavalgando catraias pelos igarapés poluídos, trarão fome, desemprego, doenças e morte.
O padre aproximou-se e disse:
- Senhor, não destrua Manaus. Os inocentes não podem pagar pelos pecadores. Castiga apenas os ímpios. Preserva os justos: são milhares de pessoas conscientes. Fá-los-eis perecer? Não perdoaríeis antes a cidade, em atenção a essas pessoas que sabem votar?
O Senhor respondeu:
- Taí. Se eu encontrar em Manaus cinquenta políticos justos, eleitos pelo povo, perdoarei a toda a cidade em atenção a eles.

O padre Guidotti fez as contas nos dedos, tremeu nas bases e negociou:
- Excelência, não me leveis a mal, se ainda ouso falar-vos, embora seja eu pó e cinza. Se porventura faltar dez aos cinquenta justos, fareis perecer toda a cidade por causa desses dez?
O Senhor respondeu, tratando o sacerdote com a maior intimidade:
- Fica frio, Humberto. Não destruirei Manaus, se nela eu encontrar quarenta políticos justos.
O padre voltou a contar. Contou deputados, vereadores, secretários, prefeito e governador. Barganhou como um camelô da Compensa:
- Rogo-vos, Senhor, que não vos irriteis se eu insisto ainda! Talvez só se encontrem trinta justos.
Deus, que não é besta, contou também nos seus dedos e desafiou:
- Se eu encontrar trinta políticos incorruptíveis em Manaus, salvo a cidade.
O padre Guidotti, que também não é leso, pediu as pastas do arquivo do CDDH, com recortes de jornais e ponderou:
- Desculpai, se ouso continuar enchendo o vosso divinal saco e torrando vossa celestial paciência. Pode ser que só se encontrem vinte.
- Tudo bem. Em atenção às orações de dona Elisa e aos vintes políticos honrados, não destruirei Manaus.
O padre Guidotti lembrou-se dos vereadores ressarcidos, dos desmandos do Klinger, das trapaças dos Tiradentes, das mamatas do Tribulins, visualizou - ai! - o Pauderney e - ai, ai - o Euler e replicou:
- Senhorzinho de minh'alma. Não se irrite se falo ainda uma última vez! Que será se forem encontrados apenas dez políticos honrados?
Deus respondeu sem pestanejar:
- Negócio fechado. Ainda assim não destruirei Manaus por causa desses dez.
Nessa exato momento, os anjos já haviam feito suas contas. Chamaram Eron, Vanessa, Praciano, Sérgio Cardoso - o Leonel entrou na última hora - um ou outro secretário e mais uns quantos gatos pingados e disseram-lhes:
- Levantai-vos, chamai vossos eleitores e sai daqui, porque o Senhor vai destruir Manaus. El Niño já invadiu o Palácio do Governo, de onde comanda a vida da cidade. Nada de olhar para trás, para não virar estátua de sal.
Manaus não possuía dez políticos honrados. Por isso, aconteceu o maior desastre da história baré: o racionamento de energia aumentou para 12 horas, o sol esquentou, explodiram geladeiras, computadores, aparelhos de ar-condicionado, ventiladores. Os alimentos apodreceram. Queimaram árvores. Cessaram as chuvas. As cacimbas secaram. Os igarapés viraram lama e lixo. Caiu sobre a cidade uma chuva de enxofre e de fogo, vindo do céu, produzindo um fumacê que arrebentava pulmões e brônquios de todo mundo. Manaus transformou-se em uma grande fornalha, coberta de fumo espesso. Instaurou-se o reino do caos e da desordem. De quebra, o Jaith Repolhão infernizou o trânsito.
 - A culpa - diziam - é do El Niño.
A cunhada do Ferreti, coitada, que tinha voltado apenas para acertar o passo do velho Oder, virou estátua de sal. Foi aí, então, que a população descobriu, enfim, quem era, na verdade, El Niño, que tinha duas caras: uma, a que aparecia, era o fenômeno natural do oceano Pacífico, que nada tinha a ver com a história. A outra, mascarada, que tentava esconder-se, era a cara da incompetente administração pública local, conhecida pelos ingleses como The Amazon Niño. Essa é que era nociva.
Batendo papo sobre a catástrofe, o querubim lembrou que Leopoldo Neves, o Pudico, morto em 1953, apesar de ter sido governador do Amazonas, permaneceu pobre e honrado. Quando assumiu o governo em 1947, Manaus era iluminada com luz de lamparina. Tomou medidas saneadoras para acabar com a pouca vergonha. Serafim arriscou:
- Senhor, está certo. Povo que não sabe escolher seus dirigentes, merece ser castigado. Permitais, no entanto, que possam reconstruir sua terra e nas próximas eleições acabem com os desmandos do El Niño.
Do fundo do vale amazônico, ouviu-se um coro de vozes:
- Assim seja. Amém, Jesus! Aleluia, peixe no prato, farinha na cuia.

P.S. Esta crônica, com modificações, foi publicada simultaneamente na revista "Circuito Integrado", editada em Manaus e no novo Jornal do Commercio (18/11/1997)

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