CRÔNICAS

As Línguas do Diabo e o Museu da Língua Portuguesa

Em: 18 de Julho de 2021 Visualizações: 3660
As Línguas do Diabo e o Museu da Língua Portuguesa

 "Museu é um lugar para colorir o pensamento". Diodato Aiambo, Tikuna.

Espero ter saúde para um dia retornar ao Museu da Língua Portuguesa (MLP), que reabre suas portas no próximo 1º de agosto, ali no coração da Cracolândia, em São Paulo. Visitei-o várias vezes, uma delas com um amigo guarani. Depois virou cinzas devorado pelo trágico incêndio. Escrevi então “Uma pátria, muitas línguas”, que exaltava a expografia ousada e as formas criativas de musealizar o idioma oficial, mas com visão crítica do glotocentrismo, que apresentava o Brasil como um país unilíngue. Afinal, musealizar não é só “conservar memória”, mas construí-la e essa construção deixava de fora da história do Brasil as línguas indígenas, muitas faladas ainda hoje e discriminadas pelo colonialismo como “línguas do diabo”.  

Durante os seis anos em que permaneceu fechado, o Museu elaborou projeto de recuperação para compor parte da nova exposição. Convidado para gravar depoimento em vídeo que durou mais de uma hora, fiz uma síntese das glotopolíticas do período colonial, quando as línguas indígenas e também as africanas foram satanizadas e minorizadas, visão essa herdada pelo senso comum até hoje. Esse depoimento reduzido a aproximadamente cinco minutos faz parte da mostra, segundo Will Nogueira, produtor audiovisual. De qualquer forma, a diretora Marília Bonas, em declaração à Folha SP (16/07/21), destacou que mudou a forma de abordar questão:

- “O Museu nasceu em 2006 com ênfase na celebração da língua [portuguesa]. Isso não se perdeu, ainda é importante, mas estamos também atentos à diversidade. As exposições refletem as lutas identitárias”.

Um dos curadores, Hugo Barreto, acrescentou que há “encontros, desencontros e até confrontos, como vídeos com críticas de líderes indígenas à imposição do idioma português aos povos originários do Brasil”.

A Rua da Língua

A repressão às línguas autóctones é apresentada por líderes indígenas no “Falares” localizado no 3º andar, por onde começa a atual exposição – segundo informe da curadoria. Lá o visitante encontra uma instalação com nove telas verticais enormes, nas quais aparecem, em tamanho natural, diversas pessoas desconhecidas e outras famosas: rezas, brincadeiras, cantos, poemas e interpretações teatrais sinalizam para o poder da língua. É possível acompanhar um espetáculo de luz e som na “Praça da Língua”.

O visitante desce ao 2º andar e percorre um longo corredor – a “Rua da Língua” – que exibe um painel e vídeos poéticos curtos. No espaço “Nós da Língua” passeia por textos escritos, imagens e sons de países no qual se fala o português que, no Brasil, recebeu enorme contribuição das línguas indígenas, não apenas no léxico, mas nas camadas profundas da língua. Na parede oposta, a linha do tempo da exposição anterior foi enriquecida com vídeos didáticos, música e objetos de coleções etnográficas como um vaso de cerâmica Tupinambá do acervo da USP. É lá também que se curte os versos e os textos dos nossos escritores.

No 1º andar, o visitante é recebido por estandartes de maracatu da mostra temporária “Língua Solta” em cartaz até 3 de outubro. Abre espaço ainda para artistas indígenas e negros como Denilson Baniwa e Jaime Laureano, que compartilham sua arte com o humor das ruas, cartazes e rótulos de cachaça e até memes das redes sociais.

A exposição do MLP é um sopro de liberdade, de criatividade e de esperança, no momento em que o país vive enorme retrocesso no campo cultural. A Funai, dirigida por um policial, não cumpre seu dever constitucional e ataca os direitos indígenas nas questões de terra, língua, saúde, educação. Aquele que Spike Lee classificou como gângster debochou publicamente das línguas indígenas em várias ocasiões. Tal contexto mostra a importância de levar nossas crianças ao Museu, que desempenha função educativa indispensável para reavaliar a herança colonial e olhar com novos olhares culturas que resistem há mais de cinco séculos.

Resistência das mulheres

A satanização das línguas indígenas iniciada no séc. XVI foi reforçada no séc. XVIII no Brasil e na Amazônia. O governador do Grão Pará João Maia da Gama ordenou aos missionários, em 1727, que obrigassem as crianças a falar português “uns com os outros e dar-lhes algumas palmatoadas” no caso de desobediência. Trinta anos depois o governador Xavier de Mendonça, meio irmão do Marquês de Pombal, recomendou medidas para extinguir as línguas indígenas e a “perniciosa e abominável língua que aqui impropriissimamente deram o nome de geral” por ele classificada como uma “diabólica invenção”.  

A repressão encontrou forte oposição. No Tesouro Descoberto do Rio das Amazonas – uma espécie de bíblia ecológica da região escrita no séc. XVIII – seu autor, o jesuíta João Daniel, conta que as mulheres resistiam mais em abandonar suas próprias línguas. Ele presenciou quando um “missionário mandou dar palmatoadas” em várias índias, mas elas “antes se deixavam dar até lhes inchar as mãos e arrebentar o sangue”. Graças a essa resistência, são faladas 274 línguas indígenas no Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010 baseado em autodeclaração, ou cerca de 160 segundo critérios dos linguistas.

- Se o que se pretende nos índios é civilizá-los e fazê-los gente, este fim só, ou mais depressa e com mais facilidade se consegue com a língua portuguesa do que com a linguagem dos índios” – escreveu João Daniel. (Tomo II, p.227).

Processo similar ocorreu em todo continente americano, como revela o livro “Las lenguas del diablo”, editado agora no México, organizado pelo doutor José Ángel Quintero Weir, linguista indígena do povo Añu, uma língua da família Arawak. São oito os autores de vários países, incluindo este locutor que vos fala.

Lenguas del diablo

Na introdução, José Ángel, professor catedrático da Universidade de Zulia, na Venezuela, expõe que a demonização das línguas indígenas por membros da igreja católica no período colonial se estendeu por todo o período republicano, com o estabelecimento de um sistema educativo que proibiu o uso dessas línguas, cujos falantes foram despojados também de seus territórios e condenados a desaparecer.

- “Antes não existia o diabo. Quem trouxe o diabo para o nosso continente foi a igreja e essa igreja veio de outra parte do mundo, veio de longe, do outro lado do mar. Eles tiveram que trazer o diabo para que nossa língua fosse secando por um temor desconhecido, por vergonha, por ignorância. Incutiram em nós o medo e aquela ideia de que eu não quero que meu filho tenha medo, que debochem dele e que seja ignorante como eu”.

Desta forma, ensinaram os indígenas a se envergonharem de suas línguas como destaca José Ángel que define quem é, afinal, o diabo que deve ser combatido:  

 - Este livro é a manifestação de algumas certezas, mas também de nossas dúvidas e de nossos medos, pois o diabo-Estado, o diabo-dinheiro, o diabo-conveniência continuam nos assediando com suas tentações para nos afastar da necessidade de avançar nas ações de resistência consciente, que é aquilo que realmente nos remete ao tempo da liberdade.

O MLP traz elementos para conhecermos e amarmos a “última flor do Lácio”, mas também as primeiras flores de Pindorama. Nos seus três andares certamente encontraremos reflexões para descapirotizar línguas que fazem circular cantos, narrativas míticas, saberes e, dessa forma, combater a colonialidade, incapaz  de  organizar a cognição em outros parâmetros. Glotocentrismo e terraplanismo andam de mãos dadas. 

Puxa vida, eu daria tudo para percorrer a exposição do MLP acompanhado de meu amigo guarani e das minhas três netas para dessa forma colorir o nosso pensamento. Quem mora em São Paulo ou passar por lá que aproveite. Por causa da pandemia, a entrada de 40 pessoas é permitida a cada 45 minutos com agendamento pela internet. Aguyjeveté.

P.S. 1 – “O olhar dos indígenas sobre a musealização da sua memória e do seu patrimônio” será apresentado no dia 04 de agosto, às 14h30 no Simpósio Internacional organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS) da UNIRIO, coordenado pela dra. Helena Cunha Uzeda, com a participação de Priscila Faulhaber e deste locutor que vos fala.   

P.S.2 – O Museu do Amanhã está produzindo uma exposição sobre a Amazônia prevista para novembro deste ano, abordando as tecnologias para manter a floresta em pé. A proposta é ter, na sala sobre a Amazônia milenar, áudios em diferentes línguas falando a mesma frase: “A floresta somos nós e nós somos a floresta”.  

Referências:

1. José Ângelo Quintero Weir (org) Las lenguas del diablo. Lengua, cosmovisión e re-existencia de los pueblos de Abia Yala. México. Tumbalacasa.2020

2. José R. Bessa: Índio falou, tá falado. http://taquiprati.com.br/cronica/1072-indio-falou-ta-falado

3. José R. Bessa: Das cinzas do museu: uma pátria, muitas línguas - http://taquiprati.com.br/cronica/1178-das-cinzas-do-museu-uma-patria-muitas-linguas-versao-em-espanhol

KARAPIRU – NOTA DE FALECIMENTO

Karapiru, ou “Carapiru” como acabou mais conhecido, faleceu em Santa Inês, no interior do Maranhão, na última sexta-feira, 16 de julho de 2021. A história da sua vida é extraordinária. Pertencente ao povo Awa Guajá, vivia isolado na mata com sua família, quando, nos anos 1970, sofreu uma emboscada de fazendeiros que circulavam na região. Ao ataque, sobreviveram apenas ele e um de seus filhos. O menino foi capturado pelos agressores. O pai fugiu. Passou dez anos escondido, sempre em movimento, sempre fugindo dos não indígenas. Percorreu sozinho centenas de quilômetros, do Maranhão até o norte da Bahia, onde, em meados dos anos 1980, topou com moradores de uma comunidade rural na cidadezinha de Angical. O seu aparecimento repercutiu na região, atraiu a atenção da Fundação Nacional do Índio e da imprensa do país inteiro.

Ninguém sabia quem era ele, que língua falava ou por que estava ali. Em uma das inúmeras tentativas de solucionar o mistério, a FUNAI decidiu levar um intérprete Awa Guajá para falar com ele. Foi então que o rapaz, ao encontrar com Karapiru, olhou-o bem no rosto, reconheceu as marcas dos tiros em seu corpo - cuja dor ele carregaria pelo resto da vida - e concluiu:

- “Ele é meu pai”.

A partir desse reencontro, num movimento impensável do acaso, ele pôde restabelecer contato com a família e enfim voltar a viver junto de seu povo.

Na vida de Karapiru, a violência e a destruição promovidas pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas foram uma constante ameaça. Sua fantástica saga de fuga tem uma dimensão que a maioria de nós sequer cogita experienciar. Apesar de ter ganhado o imaginário nacional na época, chegando a ser contada em filme décadas depois, essa história ecoa incontáveis outras, vividas tanto pelos Awa Guajá quanto por todos os povos indígenas no Brasil.

Um processo longo e contínuo de genocídio que permanece, em sua maior parte, alienado do resto da sociedade. Para todos que tiveram ou terão a oportunidade de conhecer essa história, talvez o processo seja uma das maneiras mais intensas de superar essa invisibilidade em relação ao genocídio, de conferir-lhe materialidade, historicidade, de acessar e entender o ponto de vista de suas vítimas. Karapiru nos ensinava tudo isso, e ensinava com a doçura que lhe é característica: sempre sorrindo, sempre carinhoso com quem convivia com ele, uma doçura indestrutível, mesmo depois de tantas perdas, fugas, tanta violência vivida.

A doçura como resistência.

Karapiru viu o genocídio de frente e carregou suas marcas no corpo, porém não resistiu à Covid-19. Já havia tomado as duas doses da vacina, mas diante dos altos níveis de circulação do Sars-CoV-2 que o Brasil ainda mantém, a proteção não foi suficiente. Os Awa Guajá têm, desde o início da pandemia, tentado se manter apenas em seus territórios, restringindo suas saídas apenas para casos de emergência de saúde. Houve, em 2020, também um esforço de parceiros e aliados para que fosse possível a manutenção desse isolamento e que houvesse um controle de entrada e saída de pessoas das terras indígenas, fossem elas indígenas ou não-indígenas.

As estatísticas disponíveis hoje sobre a pandemia e os povos indígenas no Brasil, como as divulgadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e do Movimento Alerta, mostram que toda proteção e cuidado foram e continuam sendo fundamentais. A tragédia da pandemia no país, que está atingindo centenas de milhares de famílias, tem um forte viés racial e étnico, com os indígenas tendo proporcionalmente o maior número de casos, de internações e de vítimas fatais.

Em 2021, as vacinas trouxeram a esperança de que a pandemia poderia ser controlada. Mesmo com a disseminação de informações falsas, gerando desconfiança em relação a elas, inclusive entre os povos indígenas, os Awa Guajá aderiram à vacinação de modo generalizado assim que as doses chegaram nas aldeias. Porém, como temos aprendido nos últimos meses, as vacinas protegem a sociedade e não os indivíduos.

As mortes evitáveis continuam acontecendo aos milhares e o vírus continua circulando muito, com o agravamento de um consenso perigoso de que o pior já passou. Nessa pressão crescente pela retomada de eventos e atividades, no momento em que os riscos também aumentam, os povos indígenas enfrentam ainda uma das maiores ameaças aos seus direitos das últimas décadas, com a perspectiva de aprovação pelo Congresso Nacional do PL 490 e da adoção de jurisprudência favorável à tese do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal.

As mobilizações e os protestos - quase sempre a única ferramenta que esses sujeitos dispõem para se fazerem visíveis e lutar por seus direitos, seus territórios, tal como assegurados na Constituição Federal - tão necessários neste momento, têm levado indígenas de todo o país a saírem de suas aldeias, colocando-se conscientemente em risco, em nome da luta. Isso inclui os Awa Guajá. Eles não querem que essa violência - a que Karapiru e seu povo enfrentaram a vida toda - continue a se perpetuar.

Karapiru foi e o seu povo permanece sendo, testemunha de uma política de invasão, ocupação dos territórios indígenas, muita violência, doença e assassinato. Uma política da morte, para a qual a pandemia é, sobretudo, uma ferramenta oportuna, na medida em que contribui para a manutenção de seu projeto de aniquilação. Expressamos aqui a nossa indignação, saudade, nossos sentimentos e solidariedade ao povo Awa Guajá neste momento difícil.

Assinaram a nota: Alexandre Werá, realizador audiovisual e ativista Mbya; Cristina Amaral, montadora; Eliane Cantarino O'Dwyer, antropóloga; Fábio Costa Menezes, realizador audiovisual; Flávia de Freitas Berto, professora e linguista; Guilherme Ramos Cardoso, antropólogo; Lirian Monteiro, antropóloga; Louis Carlos Forline, antropólogo; Marina Maria Silva Magalhães, professora e linguista; Paula Sobral, antropóloga; Uirá Felippe Garcia, professor e antropólogo; Vincent Carelli, indigenista e cineasta

 

 

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8 Comentário(s)

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Soraya Rodrigues comentou:
18/07/2021
Que bom que houve essa abertura do Museu da Lingua Portuguesa para as linguas indigenas. Será que eles destacam na exposição o papel da mulher indigena na defesa da língua materna?
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Combate - Racismo Ambiental comentou:
18/07/2021
Publicado no Blog Combate - Racismo Ambientalhttps://racismoambiental.net.br/2021/07/18/as-linguas-do-diabo-e-o-museu-da-lingua-portuguesa-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Serafim Correa comentou:
18/07/2021
Publicado no Blog do Sarafa https://www.blogdosarafa.com.br/category/taquiprati/
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Isabella Thiago de Mello comentou:
18/07/2021
É tão bonito ver a resistência da lingua herdada de geração em geração. dos nossos ancestrais...Tia Francisca, que tinha fala de Iara, em Barreirinha, nos ensinava o nheengatú...
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Fátima Lourenço comentou:
17/07/2021
Tem que colocar para compartilhar. Por estar doente, não foi possível fazer a uma visita ao MLP com a professora e os alunos mas ninguém deveria deixar de conhecer.
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Jaider Esbell comentou:
17/07/2021
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Rodrigho Martins comentou:
17/07/2021
Temos que resistir as palmatoadas desse governo lamentável para que no futuro as novas gerações que virão tenham museus para visitar, culturas para conhecer e perspectivas de sonhar com dias melhores. Quero muito ir no museé de demain para ver a exposição sobre a amazônia e as tecnologias para mante-la muito interessante Pena que a Pandemia nós impede de ir no museu da língua portuguesa
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Valter Xeu comentou:
17/07/2021
Publicado no blog PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/as-linguas-do-diabo-e-o-museu-da-lingua-portuguesa/
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