CRÔNICAS

Sérgio Ricardo no Teatro Amazonas com Thiago de Mello

Em: 26 de Julho de 2020 Visualizações: 6164
Sérgio Ricardo no Teatro Amazonas com Thiago de Mello

- “Se entrega, Corisco / – Eu não me entrego não / não me entrego ao tenente /

 Não me entrego ao capitão / Eu me entrego só na morte de parabelo / na mão”.

(Sérgio Ricardo e Glauber Rocha: Deus e o Diabo na Terra do Sol)  

Foi um dia qualquer de fevereiro de 1978. O poeta Thiago de Mello, que acabara de chegar a Manaus, veio almoçar em minha casa na Rua 3 da Cohab-Am do Parque Dez, trazendo a tiracolo o cantor Sérgio Ricardo. Os dois, em turnê pelo país, iriam apresentar no Teatro Amazonas o show Faz Escuro Mas Eu Canto, que havia estreado no Teatro Opinião do Rio sob a direção de Flávio Rangel. Um declamava e o outro cantava aquelas canções de protesto que haviam conseguido burlar a censura.

Com Thiago, havíamos atravessado juntos a fronteira do Uruguai rumo ao exílio. Mas o Sérgio Ricardo eu não conhecia pessoalmente, só de fama. Ele era o autor de músicas admiráveis, especialmente das trilhas sonoras do filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol e da peça de Joaquim Cardoso Coronel de Macambira, encenada por Amir Hadad no Teatro Universitário Carioca do Rio. Além de alcançar certa “celebridade” no Festival da Record, ao quebrar o violão no palco e atirá-lo na plateia,

Na época não se usava ainda o verbo tietar, mas já se tietava, Tive de me conter e disfarçar o deslumbramento, ao ver entrar em minha casa num bairro periférico de Manaus o cantor e cineasta corajoso e lúcido, comprometido com as lutas sociais, cuja figura era agora enriquecida no plano pessoal pela manifestação de ternura à minha filha Maria que, com pouco mais de três anos e com um "n" a menos, lhe lembrava sua filha Marina, da mesma idade, de quem confessou estar morrendo de saudades.

Vou renovar

Convivemos alguns dias. Com o poeta Luiz Bacellar e a jornalista Ana Helena, mãe do Thiaguinho, servimos de “cobaia” no ensaio realizado no palco do Teatro Amazonas, um teste para ver o que funcionava e o que devia ser modificado.

Tudo funcionou naquela noite de gala do Teatro Amazonas. O espetáculo, uma manifestação artística e política de resistência à ditadura, foi dedicado ao ex-ministro da Educação do governo Goulart, Darcy Ribeiro, ali presente em carne e osso. Foi uma feliz coincidência ele estar de passagem por Manaus, ministrando um curso a indigenistas e agentes de pastoral. Em um camarote de honra – lugar, aliás, que adorava ocupar – Darcy foi ovacionado pelo público. Saudades dos tempos em que um ministro da Educação tinha a dita cuja, além de experiência no ramo e compromisso com os saberes.

O público formado em sua maioria por estudantes e ex-estudantes foi particularmente caloroso e acompanhou o show com entusiasmo. Thiago recitou seus poemas intercalados por músicas cantadas por Sérgio Ricardo, algumas que ficaram na minha lembrança: Sina de Lampião, Semente, Canto Americano e Calabouço, inspirada no estudante paraense Edson Luís, assassinado numa passeata no Rio de protesto contra o fechamento do restaurante estudantil:  

Cala o peito, cala o beiço
Calabouço, calabouço

Olha o vazio nas almas
Olha um brasileiro de alma vazia.

O final foi apoteótico, o público aplaudia de pé e cantava o estribilho “Vou renovar”.

Não lembro se Flicts fez parte do repertório do show no Teatro Amazonas, creio que não, nem sei se naquela altura Sérgio Ricardo já havia sido convidado por Ziraldo para musicar todo o seu livro que encanta as crianças nas vozes do MPB-4 e do Quarteto em Si. Sérgio Ricardo também cantarolava:     

Quando volta a primavera
E o jardim e o parque
Se cobrem de cores
Mas nenhuma cor ou ninguém
Quer brincar
Com o pobre Flicts

De violão na mão

Sérgio Ricardo brincou com Flicts e deixou algumas sementes em Manaus, adubadas por um menino amazonense, Paulinho Kokai, hoje professor na Universidade Federal de Goiás:

“Eu tinha 11 anos quando recebi convite do meu tio para ir ao Teatro Amazonas assistir ao recital do poeta Thiago de Melo, que eu ainda não sabia quem era. Como nunca havia entrado no Teatro Amazonas, fiquei deslumbrado com a beleza daquele santuário, que não ofuscou o espetáculo de poesia e música. Sim, além dos poemas de Thiago, apresentava-se Sérgio Ricardo. "Se entrega Corisco! Eu não me entrego não!". Lembro bem do refrão cantado pelo teatro inteiro. Aquele momento ficou gravado na minha memória. Acredito que ali despertou minha alma de artista”.

Paulinho Kokai, que virou mesmo artista e cantou muitos anos nos bares da vida na noite manauara, continuou:

“Sergio Ricardo marcou minha vida. As canções fortes e intensas, a personalidade marcante, me impressionaram. Mais tarde, já maduro, assisti os filmes de Glauber Rocha, os quais tinham na trilha as canções inesquecíveis da minha infância. Também assisti muitas vezes a icônica imagem dele quebrando o violão durante o festival da Record, irritado com o público que o vaiava. Eu o seguia nas redes sociais e celebrei até mesmo seu último aniversário no dia 18 de junho, quando muitas pessoas mostraram seu afeto por ele.

O cantor, compositor, cineasta e artista plástico Sérgio Ricardo, 88 anos, nunca se sujeitou nem ao tenente nem ao capitão, sequer ao Covid-19 que contraiu e do qual se curou sem cloroquina. Mas o coração não aguentou. Vítima de insuficiência cardíaca, ele se entregou, finalmente, à morte nesta quinta-feira (23), de violão na mão, que era sua arma de luta. Ficou a sua música, sua história, sua lição de vida  e a lembrança desse mundo errático: 

Tá contada a minha estória
Verdade e imaginação
Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo (bis)

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18 Comentário(s)

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Rodrigo Martins comentou:
29/07/2020
Bonita homenagem professor ao Sérgio Ricardo esse grande artista da nossa história. Fico imaginando essa apresentação no Teatro Amazonas, deve ter sido maravilhoso. Um abraço querido professor.
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Ana Maria Paixao comentou:
27/07/2020
Dois grande Brasileiros. Tenho um grande carinho por eles. Que saudade.
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Serafim Correa comentou:
27/07/2020
Publicado no Blog do Sarafa - https://www.blogdosarafa.com.br/sergio-ricardo-no-teatro-amazonas-com-thiago-de-mello/
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Combate - Racismo Ambiental comentou:
27/07/2020
Publicado no blog Racismo Ambiental https://racismoambiental.net.br/2020/07/26/sergio-ricardo-no-teatro-amazonas-com-thiago-de-mello-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Valter Xeu comentou:
27/07/2020
Publicado no blog pátria latina http://www.patrialatina.com.br/sergio-ricardo-no-teatro-amazonas-com-thiago-de-mello/
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Isabella Thiago de Mello comentou:
27/07/2020
Bessa, ainda vou morrer do coração lendo o Taquiprati! Eu vi o espetáculo no Teatro Opinião! Sergio Ricardo tocava num piano de calda, Thiago de Mello declamava com uma rosa vermelha na mão. Inesquecível para uma criança de 6 aninhos de idade. Tínhamos acabado de voltar do exílio, eu, vovó e mamãe Lourdinha, vínhamos do Uruguai em 1976. (Corremos perigo. No aeroporto fomos abordadas pelos “dobermans” da Aeronáutica). E papai vinha de Portugal em seguida, 1977 antes da Anistia. O fato é que ainda estávamos em plena ditadura militar que perseguia intelectuais que defendiam Direitos Humanos e Trabalhistas. Antes de regressar, em outubro de 77, Thiago, lá em Lisboa, deu uma contundente entrevista para o repórter Sergio de Oliveira da Revista VEJA, declarando que ele Thiago, Julio Cortazar, Eduardo Galeano, Sergio Ramirez, Eric Nepomuceno, Jorge Amado (entre tantos outros que se encontravam em Feiras Literárias na Europa) comungavam da mesma idéia de que “o verdadeiro compromisso do escritor é com a vida e o homem do seu tempo. Com a realidade histórica e cultural do seu país.” Nesta mesma matéria Thiago anunciou a sua chegada e o motivo: “para trabalhar pela democracia”, e ainda por cima avisou a data do regresso “no próximo domingo”. Pra quê? Assim que a aeronave pousou no Galeão do Rio de Janeiro, os militares prenderam papai na porta do avião. Solto, ao invés de se intimidar, realiza este Projeto FAZ ESCURO MAS EU CANTO ao lado de Sergio Ricardo e Flavio Rangel. Rodaram o Brasil de norte a sul cantando “- Se entrega, Corisco! - Eu não me entrego não, que eu não sou passarinho pra viver lá na prisão ...” São Titãs, homens de coragem! Trouxeste também, Bessa, a homenagem que Thiago e Sergio fizeram ao antropólogo Darcy Ribeiro no Teatro Amazonas – onde Darcy estava na platéia e foi aplaudido de pé - e ainda por cima com este registro histórico do Darcy recebendo Thiago dentro de sala de aula na Universidade em Manaus !! Bessa, permita-me rasgar uma seda. Tu és, alem de companheiro de exílio, um professor querido da UERJ e da UNI RIO, e da UFAM e da UEA (junto com tantos professores e perdoe-me a omissão pois a lista seria imensa) que ensina a pesquisar nossas origens, nossa memória, com visão crítica da realidade para refazer a nossa historia. E por isso, Bessa, assim como Darcy Ribeiro, Thiago de Mello, Sergio Ricardo e Flavio Rangel; tu és também um Titã, um filho do Saber e da Coragem! *** Em tempo: e por falar em Titãs... O diretor de teatro Flavio Rangel e o escritor Thiago de Mello fazem parte dos NOVE DO GLÓRIA com os jornalistas Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves, Antonio Callado, os cineastas Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Mario Carneiro e o Embaixador Jaime Rodrigues que são os 9 intelectuais que junto com os estudantes organizaram um protesto contra a ditadura do general Castello Branco na Conferência da OEA (Organização dos Estados Americanos), na frente do Hotel Glória no Rio de Janeiro, em setembro de 1966. Todos foram presos e quem mais intercedeu pela libertação dos artistas junto ao governo militar foi Austragésilo de Athayde, presidente da Academia Brasileira de Letras. O único que está vivo desta manifestação é o poeta Thiago de Mello, talvez o mais longevo poeta latino-americano com 94 anos. Gratidão, Bessa, gratidão pelo Tempo dos Tempos ... Saudade da tua afilhada, Isabella.
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Euclides Duque comentou:
26/07/2020
Um "Corisco" que nunca se entregou tendo as artes nas mãos como seus "parabelos". Viva Sergio Ricardo!!!
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Marta Maria Azevedo comentou:
26/07/2020
Mais pertinente essa música impossível..
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Celeste Correa comentou:
25/07/2020
Nesse contexto sócio político tão difícil é muito triste para o país saber da morte do Sérgio Ricardo, por tudo o que ele representou para a cultura do país, e também, porque simbolicamente fica uma sensação enorme de que a luta contra tudo isso que estamos vivendo está ficando muito desigual e injusta. Mas, a exemplo dele, que driblou a censura na ditadura, também não nos entregaremos não.
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Dalila Almeida Gomes comentou:
25/07/2020
. Fiquei bastante triste com o falecimento dele..
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Ronaldo Silva comentou:
25/07/2020
Ótimo diretor de cinema além de cantor e compositor.
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Roberto Zwetsch comentou:
25/07/2020
Excelente memória, Bessa. Juntos Darcy Ribeiro, Thiago de Mello e Sérgio Ricardo, com você na retaguarda, de fato, deve ter sido uma apoteose. Isto nos faz muito falta hoje, em reclusão volunt[aria e necessári, mas que nos desmobiliza pra caramba. Viva a memória Viva desses grandes poetas. RZ.
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Kelerson Semerene Costa comentou:
25/07/2020
Que relato, Bessa! E que lembrança maravilhosa!
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José de Arimatéa comentou:
25/07/2020
Fará falta no cenário poético.
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Aurora Cano (via FB) comentou:
25/07/2020
Registro histórico salpicado de poesia músicada.
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Eliane Lopes comentou:
25/07/2020
Hora de sermos todos Corisco! Eu não me entrego não !!!
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Ademario Ribeiro comentou:
25/07/2020
Bessa, Bessa, Bessa - esse Sérgio Ricardo foi uma bandeira desfraldada da poesia, da música, da força de jequitibá a desmantelar a sanha assanhada dos coronéis e dos seus comparsas do país das "Cajazeiras". Esse gigante da cultura e arte - deixará seu canto forte, sua língua ferina - anunciando sua profecia e utopia - que (...) Que até chão seco um dia dá semente". Sua semeadura continuará por muitas luas a infernizar os asquerosos e déspotas da Terra Brasilis.
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Sirlene Bendazzoli comentou:
25/07/2020
Como queria ter visto esses dois grandes !!
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