CRÔNICAS

Miguel Baldez: ainda tocando pandeiro

Miguel Baldez:  ainda tocando pandeiro

Os Guarani e os Pataxó do Rio de Janeiro, os moradores de rua, os sem-terra, os trabalhadores rurais e urbanos, os humilhados, os injustiçados e todos aqueles que tem sede de justiça perderam um fiel aliado nesta quarta (10), com a morte do jurista Miguel Baldez. A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP) e a Procuradoria Geral do RJ reconheceram, em notas, o papel fundamental que ele teve na regularização de um espaço para os sem-teto, na demarcação das terras indígenas e nas desapropriações de terrenos para a edificação dos CIEPS, quando chefiava a Procuradoria de Patrimônio e Meio Ambiente.

Tive o privilégio de conviver com ele, a partir do final dos anos 80, no Curso de Direito Social da Uerj, que ele coordenou com o desembargador Sérgio Verani e a psicóloga Esther Arantes e no Fórum de Luta pela Vida e Contra a Violência criado na Baixada Fluminense e cidades serranas, assim como em vários cursos ministrados na Escola da Magistratura (EMERJ), nos quais discutimos os direitos dos povos indígenas, o direito à terra, à moradia, à saúde e o direito insurgente. Sua radicalidade, seu entusiasmo e sua fidelidade aos princípios que defendia eram contagiantes.  

Há dez anos, este Diário do Amazonas publicou a crônica “Miguel Baldez, o tocador de pandeiro”, que vai aqui resumida e atualizada como a despedida que, devido ao isolamento social, não pôde ser feita presencialmente.

Aquarela do Brasil

- Miguel, tu ainda toca pandeiro?

A pergunta feita pelo frentista do posto de gasolina em Cascadura pegou de surpresa o motorista do Dauphine. Podia ser um dia qualquer, de um mês qualquer, mas o ano, com certeza, era 1960, como indica a marca do carro. O motorista não reconheceu o frentista negro e disse para ganhar tempo:

- Desculpa! Não ouvi direito!

O frentista abriu um sorriso sem vários dentes na ‘comissão de frente’, encurvou a mão direita na forma de concha e, com as pontas dos dedos abertos, começou a dar chicotadas em uma lata de óleo vazia que trazia na mão esquerda, produzindo diversos timbres e um bom suingue. Seus dedos descontraídos voavam sobre aquele pandeiro improvisado. O rosto de Miguel se iluminou:

- Louriiiinho! Há quanto tempo!

Os dois se abraçaram. ‘Lourinho’ era o apelido do Getulhão, um amigo de infância, no final dos anos 30, lá na parte pobre do bairro da Zona Norte do Rio, onde, juntos, tocavam pandeiro. Fazia mais de vinte anos que não se viam. Lembraram os velhos tempos, os amigos dispersos, trocaram informações, riram, mataram a saudade. Se, como disse alguém “minha pátria é minha infância”, aquele era um encontro de exilados.

Daquele grupo, ninguém estudou, exceto Miguel Lanzellotti Baldez, nascido em 24 de fevereiro de 1930, filho do alfaiate Coryntho Baldez, e de Maria Luiza Lanzellotti, uma imigrante italiana, que deixou o meio rural para trabalhar como operária em uma fábrica de calçados.

O pai e a mãe ralaram para que Miguel se formasse em Direito em 1955. Com os honorários recebidos na primeira ação, ele comprou um Dauphine, carro econômico, popular, de baixo custo, que adquiriu má fama, porque capotava facilmente. Por isso, foi apelidado de ‘Leite Glória’, o leite em pó instantâneo, cujo slogan anunciava: “desmancha sem bater”.

O som do pandeiro

Mas o que Getulhão viu – e não escondia sua alegria - foi seu amigo de infância, agora doutor, que havia estudado por todos eles e se tornara detentor de conhecimentos e de um carro zerado. Com uma estopa, acariciava a carroceria reluzente, contente, como se todo o bairro estivesse pilotando o Dauphine.

- Miguel, tu ainda toca pandeiro?

A retórica da pergunta pressupunha intimidade, compartilhamento: somos amigos que tocamos pandeiro na infância.  Chegando em casa, como quem não quer nada, Getulhão diria à sua mulher: - Lembra do Miguel? A gente tocava pandeiro juntos. Ele agora é doutor. Qualquer dia desses dou uma volta no Dauphine com ele.

Mas dentro da pergunta, carregada de símbolos, estavam embutidas várias metáforas. O som do pandeiro tinha outros significados, incluindo o compromisso social e o entusiasmo pela vida. Era como se dissesse: Miguel, tu continuas alegre e musical? Miguel, mesmo motorizado, tu ainda estás do lado de cá? Nessa última, estava implícito um apelo: não deixa de tocar pandeiro, não passa para o lado de lá, fica com a gente, Miguel.

Miguel ficou. Alegre, tocando pandeiro vida afora, sem negar as origens. Inconformado com a injustiça social, se engajou nas lutas populares. Com a renúncia do Jânio, em 1961, foi às ruas lutar pela posse de Jango, ajudando na construção da greve geral. Vinculou-se ao CGT – Comando Geral dos Trabalhadores e ao sindicato dos portuários.

Através de concurso público, se tornou Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Depois do golpe militar, participou da resistência à ditadura, lutando em várias trincheiras, inclusive na formação de novos advogados. Foi professor titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito Cândido Mendes. Mesmo depois de aposentado, continuou assessorando os movimentos sociais, particularmente os Trabalhadores Rurais Sem Terra e os indígenas. Recentemente, apoiou os Pataxó da Cachoeira do Iriri, em Paraty (RJ), na luta pelo reconhecimento de seu território.

O flautista   

O pandeiro de Miguel tocou na organização do Núcleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos e Irregulares da Procuradoria Geral do Estado a partir de 1982. Teve atuação decisiva na demarcação das terras dos Guarani em Angra dos Reis. De lá para cá, continuou tocando para os movimentos de luta pela terra, tanto urbanos como rurais, que ele assessorou, com conferências, cursos e textos publicados, entre outros temas, sobre o direito insurgente e a questão agrária.

Ali, onde encontrava alguém sofrendo, esse amante da justiça tocava seu pandeiro. Um sábado, convidou o aprendiz aqui para “tocar pandeiro” com ele em Campo Grande (RJ), onde participamos de uma mesa-redonda. De carona em seu carro – não era o Dauphine – Miguel Baldez me contou essa história que nunca esqueci. Decidi reescrevê-la para homenageá-lo.

Esse infatigável tocador de pandeiro me lembra aquele flautista medieval da canção de Georges Brassens, de origem humilde, cuja música era tão refinada que o rei tentou comprá-lo com títulos de nobreza, emblema, brasão, escudo, honrarias, glória, castelo com fosso e muralha. No final, “o flautista, modesto jogral / disse um sonoro não ao castelo feudal / Agora, nenhum camponês diz / que o flautista traiu sua raiz / E Deus reconhece como filho seu / aquele bardo que não se rendeu”. Como o bardo, esse Baldez também não se rendeu. Não se vendeu. O seu pandeiro sabia para quem tocava. Cadê o nosso tocador de pandeiro? Dizem que ele foi visto tocando pandeiro no enterro de George Floyd e nas manifestações de rua das cidades americanas e europeias. Dizem.

P.S. - Ver cronica de 2010. http://taquiprati.com.br/cronica/846-miguel-baldez-o-tocador-de-pandeiro

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18 Comentário(s)

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Valter Xeu comentou:
16/06/2020
Publicado em Patria Latina: http://www.patrialatina.com.br/miguel-baldez-ainda-tocando-pandeiro/
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Maria Elena Covezzi do Val comentou:
15/06/2020
Brilhará em outros rincões... Seu pandeiro alegrará outras paragens!
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Susana Grillo comentou:
15/06/2020
Bessa, que pessoa linda, o Miguel Baldez. Nunca tinha ouvido falar nele. Ainda bem que contamos com sua memória e compromisso com a justiça social e a justiça com pessoas como ele. Abraços,
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Francisco Teixeira da Silva Telles comentou:
15/06/2020
Linda homenagem! Como é linda a crônica original! Que coisa boa receber essas poesias em forma de crônicas sobre Baldez! Mestre de todos os que acreditam em um Direito crítico ao estado de coisas que acompanha a Historia de nosso País.
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Ana Silva comentou:
14/06/2020
Lindo, lindo, Bessa! O Baldez e sua trajetória de luta a favor dos injustiçados nos inspira e nos encoraja a continuar lutando por dias ensolarados. Que Nhanderu o leve para a Terra Sem Males.
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Luiz carlos jorge romeiro comentou:
14/06/2020
Daquelas pessoas que estarão sempre presentes. Brasileiro humanista , praticante dos valores em que acredita e acima de tudo um PATRIOTA !
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Esther Arantes comentou:
14/06/2020
Caro amigo Bessa, Que linda e justa homenagem ao nosso querido Miguel Baldez. Ele se foi, neste momento tão difícil da vida nacional, nos deixando mais tristes. Mas, certamente, a lembrança e o exemplo de sua coragem, alegria, militância, generosidade e companheirismo não nos deixarão orfãos. Mestre Baldez, amigo Baldez, companheiro Baldez: Presente!
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Adeice Torreias comentou:
14/06/2020
São perdas irrecuperáveis, Bessa. 2020 veio pra acabar. Misericórdia Senhor!
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Tania Pacheco comentou:
14/06/2020
Beleza, Bessa! Comovente. Que continuemos a tocar pandeiro, sempre!
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Rodrigo Octávio Senra comentou:
14/06/2020
Belo exemplo de vida, que nos encoraja e que prova de que é possivel envelhecer com dignidade sem entregar o ouro aos bandidos.
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Celeste Correa comentou:
14/06/2020
Nesses tempos de tanto obscurantismo o país perde muito com a morte desse tocador de pandeiro.A tua  homenagem me fez lembrar a  música"Silêncio" da Elis Regina que dizia " atenção, O samba já tem outra marcação O pandeiro já não faz o que fazia". Estamos vivendo um tempo de  samba do crioulo doido, com marcações  sem compasso, onde um pandeiro como o do Baldez fará muita falta.Desde o dia 10, ele, que foi resistência e tocou fortemente contra a opressão, contra a desigualdade e pela luta de direitos sociais, deixou o país mais pobre. Justamente nesse momento em que o Brasil está tão carente de tocadores de pandeiro   resistentes e  inconfomados com a injustiça social ele se foi deixando uma sensação de que as lutas populares ficaram órfãs. Mas ele plantou sementes e o som do seu pandeiro continua  ecoando  naquilo que lindamente construiu e defendeu em toda a sua história.
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Sergio Verani: comentou:
14/06/2020
Obrigado, Bessa ! O Baldez está andando por aí, sempre nos instigando à ação. Envio uma mensagem que mandei para a Associação Juízes para a Democracia . A Luciana, ali mencionada, era estagiária do PCDH (Programa Cidadania e Direitos Humanos, UERJ), hoje é Juíza do Trabalho no Rio. Grande abraço. A mensagem é essa: Ontem, 10 de junho, foi um dia muito triste. O celular tocou às 7.40 - era Paulo Baldez, meu querido amigo. Não atendi logo, imaginava o que podia ser. O coração foi se preparando, alguns minutos depois retornei a ligação. Quando uma pessoa querida fica doente é muito ruim, mas permanece a expectativa do reencontro, mesmo brevemente. Com o anúncio da morte, a pessoa querida passa a existir só na memória. Conheci Miguel Baldez em 1979, nas Assembleias de professores sobre as primeiras greves que ressurgiam. Baldez era da Candido Mendes Centro, eu da Candido Ipanema. A partir de 1988, passamos a trabalhar juntos na militância pelos Direitos Humanos. Em 1989, forma-se na UERJ o Fórum Permanente em Defesa da Vida contra a Violência. Depois, participamos da criação e coordenação do Curso de Extensão Direito Social, na UERJ, do Programa Cidadania e Direitos Humanos (Subreitoria de Extensão) e Faculdade de Direito. Essa longa convivência com Baldez e os movimentos populares me ajudou a ser um juiz melhor. Lembra, Luciana Vanoni, de uma reunião na quadra do Santa Marta, com a Associação de Moradores? A quadra cheia, as mães contando sobre as violências praticadas contra as crianças, até proibidas de brincar, de repente entram na quadra aqueles homens grandes da PM com fuzis. Fiquei com muito medo, mas a presença de Baldez me deu segurança. Como havia um Procurador do Estado e um Desembargador, os PMs acharam que era uma reunião séria e foram embora ... As lutas e as práticas sociais de Miguel Baldez, e a nossa memória dele nos ajudarão a resistir ao fascismo e a lutar sempre a favor da vida.
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Loyuá Costa comentou:
14/06/2020
Que linda homenagem, professor! Agora a luta é em outro plano...
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Aline Rochedo Pachamama comentou:
14/06/2020
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Andrea Sales comentou:
14/06/2020
Que bela homenagem Bessa! Uma crônica pra lembrar que é preciso "continuar tocando o pandeiro" mesmo que tentem abafar o som! Não podemos parar. Abraços!
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Rocha Adair Leonardo comentou:
13/06/2020
meu grande amigo, Baldez! Tenho a alegria de o ter trazido para a UERJ, para com Verani e Esther Arantes tocar o curso de formação em Direitos Humanos!, no mandato Hesio Cordeiro
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Bolivar Carvalho (via FB) comentou:
13/06/2020
Adorei, Dauphine tinha uma grande vantagem: nao bebia. Tem pessoas que morrem e tem uns que nos matam aos poucos.
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Iñaki Gómez Corte comentou:
13/06/2020
Que notícia triste e que belíssima homenagem. Viva Baldez e todos os tocadores do pandeiro da justiça! Boa viagem Miguel e muito obrigado!
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