CRÔNICAS

O incêndio na casa de reza: obra do Curupira?

O incêndio na casa de reza: obra do Curupira?

A queima de fogos em Copacabana anunciava o ano novo quando, longe dali, um fogo criminoso incendiava a Casa de Reza – a Opy -  dos Guarani-Kaiowá na aldeia Laranjeira Nhanderu, município de Rio Brilhante (MS), que voltou a ser atacada na noite seguinte por dois jagunços. Nesta mesma noite, no município de Dourados(MS), foi a vez de 40 pistoleiros fortemente armados invadirem o território da retomada Nhu Werá, com o saldo de quatro indígenas e um pistoleiro feridos à bala. Policiais militares do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), claramente contra os índios, tentaram convencê-los a abandonar seu território.

 “Queremos que as autoridades tomem alguma decisão” – declarou um líder indígena.  O presidente da Funai, Alcir Teixeira, que é delegado da Polícia Federal, declarou: “Vamos defender o direito de quem tem direito, tanto o pecuarista quanto o indígena”, ressaltando que o órgão é “altamente legalista”. Um “gênio”. O ministro da Justiça Sérgio Moro não deu um pio. Os partidos políticos permanecem mudos. A grande mídia, com raras exceções, finge que esses ataques não são notícia. Afinal, ocorrem no país desde 1500 com muita regularidade, embora a escalada de violência tenha aumentado no último ano, com a impunidade dos criminosos.

Foi o caso de Paulino, Guajajara, assassinado com um tiro no Maranhão no dia 1º de novembro passado. A Folha de SP divulgou nesta sexta (10) nota da Polícia Federal que concluiu sua investigação, negando que tenha sido uma emboscada de madeireiros a indígenas, “tudo convergindo para a conclusão de que o lamentável episódio se originou da troca de tiros motivada pela posse de uma das motocicletas utilizadas pelos não indígenas”. Até o Jornal Nacional da TV Globo desconfiou da mutreta.

Neste caso, a PF “desconsidera uma história de mais de 40 anos de conflitos com madeireiros nesse território, ao longo dos quais os indígenas vêm sendo assassinados sem que haja punição” – diz uma nota do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, para quem a PF despreza o contexto de violência, mesmo quando se trata de terra indígena já demarcada. Assim, “a Polícia Federal demonstra sua opção política pela criminalização dos povos e de seus processos de luta por direito e por território, naturaliza o racismo institucionalizado pelo Estado e acaba por reforçar as políticas de extermínio dos povos originários”.

O Curupira

Qual o contexto de violência?  No caso do território Guarani-Kaiowá houve um ataque anterior no dia 4 de novembro de 2019. Conforme relato à Procuradoria Geral da República (PGR), na ausência de tanque de guerra, o veículo de combate usado pelos criminosos foi um trator adaptado que “possui uma perfuração em uma das laterais, através da qual posicionam uma arma”. Esses dois veículos se movimentaram no interior da tekoha (aldeia), atirando em todas as direções. Os índios se defenderam com fogos de artifício.

- Um menor indígena de 14 anos de idade, de nome Romildo Martins Ramires, foi atingido por 18 tiros de borracha e tiros de grosso calibre, sendo em seguida atirado vivo a uma fogueira pelos milicianos ruralistas, onde permaneceu até o amanhecer, tendo 90% do corpo queimado. Não resistiu aos ferimentos e faleceu cinco dias depois – diz nota da Comissão Pastoral da Terra (CPT).  Os tratores constituem a moderna cavalaria, aquela que atuava no faroeste norteamericano.

O mais grave é o escárnio, a ofensa à nossa inteligência, que tripudia sobre mortos e quer que a gente acredite nessas potocas. Fontes policiais afirmam que o incêndio da Casa de Reza foi provocado por uma briga entre os próprios Kaiowá. Se colar, colou. Mas não cola. É como na época da ditadura, Vladimir Herzog foi assassinado e a polícia tentou nos fazer acreditar que foi suicídio. Ficamos assim combinados: as queimadas da floresta amazônica foram realizadas por Ongs ambientalistas e pelo Curupira, com apoio de Leonardo di Caprio, todos eles não podem ver uma árvore em pé que logo acendem um fósforo.

No período colonial, bandeirantes tocavam fogo nas malocas, matavam e escravizavam índios, mas não negavam o crime. Agora, matam e ainda criminalizam a vítima por sua própria morte.   

- Estão dizendo que tem Guarani Kaiowá metido com a queima da Casa de Reza. É falso. A gente viu que foi capanga não indígena. Isso machuca e revolta a gente, porque vivemos todo dia o genocídio, a violência, o racismo e sempre procuram um jeito de dizer que isso é culpa da gente mesmo – disse um indígena vizinho da Opy, que testemunhou tudo.

A Casa de Reza

Não é a primeira Casa de Reza Guarani criminosamente incendiada por pistoleiros. O fogo tem um forte simbolismo, não se queima apenas um templo, um lugar de oração, mas se tenta destruir a religiosidade guarani, o que existe de mais sagrado. É lá que se reza, diariamente, é lá também que se aprende “a sabedoria de Nhanderu (Nosso Pai) sobre a natureza do mundo e das pessoas”, explica Alcindo Moreira, o sábio guarani de Santa Catarina. Por isso, logo que os capangas incendiários se retiraram, a comunidade lutou para apagar as chamas, conseguindo salvar parte do templo.

Todas as casas de reza queimadas foram reconstruídas. Os Guarani resistem. E a resistência é em defesa do território, da cultura, da religião, da língua. Ainda que não explicitado, podemos concluir que faz parte dessa resistência pacífica o curso intensivo de língua e cultura Guarani-Kaiowá, que será ministrado de 11 de fevereiro a 7 de março pela professora Graciela Chamorro, da Universidade Federal de Grande Dourados, com assistentes indígenas e não indígenas no CASULO – Espaço de Cultura e Arte, em Dourados. O curso terá uma carga horária de 80 horas de aulas presenciais e mais 80 horas de aulas em comunidades indígenas, uma delas pode ser, na terceira semana, a comunidade Chiriguana no Chaco paraguaio.

O ensino da língua como forma de resistência é uma recomendação do Foro Permanente para Questões Indígenas da ONU, por sugestão da poeta zapoteca Irma Pineda Santiago, que assumiu a representação no dia 1 de janeiro de 2020 junto com outros 15 integrantes. É essa resistência que pode derrotar os tratores usados como arma de combate, assim como foi derrotada a cavalaria.

Em discurso no dia 15 de abril de 1998, publicado no dia seguinte no Diário Oficial da Câmara, o então deputado Jair Bolsonaro declarou que “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”. Essa é a única situação com a qual concordamos com o ministro Abraham Weintraub: Viva a incompetência.

P.S. - Maiores informações para o Curso de Lingua Guarani em Dourados: Endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected];Whatsapps: (+55 67) 998700269 (Casulo); +55 67 981418810

Fontes - Assessoria de Comunicação do CIMI, Diário Causa Operária, Folha de São Paulo, Jornal Nacional (TV Globo).

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9 Comentário(s)

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Eunice Dias de Paula (via FB) comentou:
13/01/2020
O processo de genocídio contra os povos indígenas continua sendo praticado com assassinatos e atos horríveis como esse que ferem a liberdade de religião assegurada na Constituição Federal!
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Valdineia Aquino via FB) comentou:
12/01/2020
Valorizaçâo casa de reza importantissimo quanto na retomada e tekoha somos povos originario que ñanderu guassu deixou pra gente sinto muito essa pessoa que fez segundo ñandesy disse ojejavyma tuicha...sabemos mais ainda a fala ñandesy e ñanderu sobre.
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Adriana Karirí Sapuyá (via FB) comentou:
12/01/2020
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Celso Alziro comentou:
12/01/2020
P construir a casa tem q rezar e nhemboe muito se não traz muito problema interna no local etc...
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Nilton S. Spagnuolo (via FB) comentou:
12/01/2020
Os atos de violência praticados contra índios em todas as regiões do Brasil tem motivação óbvia: a disputa pela posse dos territórios habitados por povos originários desde tempos imemoriais. Os índios brasileiros têm o dever de pesquisar seu passado para reinterpretar a História do Brasil, omissa em relação à política genocida praticada pelo Estado brasileiro há 500 anos com o propósito de exterminar os tradicionais donos das terras, exploradas no passado pelos conquistadores portugueses e cobiçadas atualmente pelos neocolonizadores: mineradoras internacionais, empresas petroleiras, posseiros, fazendeiros, pecuaristas, madeireiras, carvoarias, complexos hoteleiros, especuladores imobiliários e até empresas engarrafadoras de água. https://noticias.uol.com.br/.../comissao-da-verdade-apura... https://cimi.org.br/.../agrotoxicos-despejados-perto.../...
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Marcelo Chalreo comentou:
12/01/2020
Caríssimo, a propósito da sua crônica , articulei com o CIMI Maranhão um pedido de suporte do Conselho Nacional de Direitos Humanos de acompanhamento desse ( farsante ) inquérito, assunto já em andamento;
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Celeste Correa comentou:
11/01/2020
O genocídio dos povos indígenas historicamente sempre foi minimizado pela grande mídia que visa atender os interesses de madeireiros e latifundiários, mas nesse governo essa turma está emponderada por conta dessa política de destruição dos direitos das minorias e o objetivo é de extermínio, mesmo A conjuntura política atual é desoladora. Há uma verdadeira prática de genocídio dos povos indígenas pelo Estado brasileiro, com a mão do Judiciário, do poder de polícia, do Executivo e do Legislativo. E quando nós sabemos de mais um incêndio criminoso como esse na Casa de Reza – a Opy - dos Guarani-Kaiowá na aldeia Laranjeira Nhanderu, constatamos um verdadeiro etnocidio ao impedir de perpetuar sua identidade de grupo, pelas proibições das suas práticas culturais e religiosas.
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Ana Silva comentou:
11/01/2020
Oportuno texto, Bessa. Nesses tempos sombrios, a força das rezas Guarani Kaiowá nos enche de coragem, ânimo e esperança. Somos todos Kaiowá!
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
11/01/2020
Uma tragédia vivida, expressão legítima da arrogância fanática, algo doentio; espécie de patologia gestada no cérebro, se é que há, desses irresponsáveis aliados ao capitão-mor. Pior, pela frequência de tragédias, tudo vai sendo naturalizado, como num grande acordo tácito firmado entre as partes interessadas. É, enfim, a banalização da drástica brutalidade.
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