CRÔNICAS

Levi-Strauss e Verequete

Em: 08 de Novembro de 2009 Visualizações: 9542
Levi-Strauss e Verequete

Final da década de 60. É a primeira vez que Pelé joga em Manaus. O time completo do Santos enfrenta o Nacional, bi-campeão amazonense (1968-1969). O estádio Ismael Benigno lotado. Os jogadores se aquecem. O locutor João Bosco Ramos de Lima, da Rádio Difusora, informa a escalação dos dois times e passa a bola para o seu colega:

- Vamos ouvir as primeiras impressões abalizadas do nosso comentarista, membro da ACLEA, num patrocínio do Guaraná Luséia! Faaaaala, Moreira!

- O Santos vai golear! O Nacional não tem ‘estrotóra’ para resistir, Bosco!

Moreira, excelente comentarista, tinha carteirinha da ACLEA – Associação de Cronistas e Locutores Esportivos do Amazonas. Ele estava fascinado com a palavra ‘estrutura’, então na moda, que pronunciava, como muitos de nós amazonenses, trocando as vogais. Tudo para ele era ‘estrotóra’. A bola começou a rolar, o Santos enfiou de cara um gol em Marialvo, narrado por Bosco, que acionou o nosso comentarista:

- Num patrocínio do Guaraná Baré, Moreira vai dizer como é que é. Faaaala, Moreira!

- O lance foi exatamente como você falou. Bem que eu disse! A defesa do Nacional não tem ‘estrotóra’ para conter o ataque fulminante de craques como Pelé, Pepe, Manuel Maria e Werneck. Vai ser goleada! É com você, Bosco!

Mas o time local resistiu. O primeiro tempo terminou Santos 1 x Nacional 0. No intervalo, no bate-papo com Bosco, Moreira usou 22 vezes a palavra ´estrotóra´, uma delas para comentar um carrinho que Lió deu em Clodoaldo:

- Ele não sofreu, porque canela de craque tem ‘estrotóra’ para agüentar bicanca.

Vem o segundo tempo na narração de Bosco:

- Rolinha dá um banho de cuia em Turcão, cruza pro Pretinho, ele mata a bola no peito, chuta, é gooooool do Nacional. Pretiiiinho! Aos três minutos do segundo tempo balança as redes de Gilmar e empata o jogo. Tudo igual, num patrocínio do Guaraná Magistral! Fala, Moreeeeira!

- O lance foi exatamente como você falou, mas o bandeirinha Pereira Serra não teve ‘estrotóra’ para marcar o impedimento de Pretinho. Esse foi o gol de honra. A goleada virá.

Para encurtar a história que está ficando muito comprida: o jogo permaneceu empate até o último minuto, quando Pelé fez o segundo. Final: Santos 2 x Nacional 1, contrariando o nosso querido locutor, que não tinha ‘estrotóra’ para prever o resultado da partida.

Pai do Estruturalismo

Mas nessa altura do campeonato, não é o jogo que interessa, nem seus comentaristas. O que queremos saber é de onde Moreira tirou a palavra ‘estrutura’ repetida tantas vezes com o nosso saboroso sotaque regional. Ela estava nos dicionários, é verdade, mas seu uso não estava popularizado. Eis o que eu queria dizer. Se Moreira pagasse um centavo de direitos autorais cada vez que empregasse a palavra ‘estrotóra’, o antropólogo Lévi-Strauss, falecido na semana passada, em Paris, ficaria podre de rico.

É que Claude Lévi-Strauss é o pai do estruturalismo, na época uma forma nova de pensar a realidade social, criada a partir de um diálogo com o lingüista Roman Jakobson que contaminou todas as ciências humanas. Ninguém precisava ler “As estruturas elementares do Parentesco” para contrair dívida com seu autor. Da mesma forma que o existencialismo, que entrou na marchinha ‘Chiquita Bacana’, do Braguinha, o estruturalismo se vulgarizou, invadiu o cotidiano e se infiltrou na linguagem corrente, até mesmo da crônica esportiva, embora com outros significados.

As atividades humanas, os fenômenos culturais, as relações familiares, a religião, os textos literários, a culinária, o carnaval e o futebol – tudo isso podia ser estudado com as lentes do estruturalismo. Moreira tinha razão: para onde você se virasse, dava de frente com uma estrutura. Depois de Lévi-Strauss, o mundo todo era uma ‘estrotóra’.

Quando Lévi Strauss completou 100 anos, no dia 28 de novembro de 2008, a coluna lhe rendeu uma homenagem, sob o argumento de que um jornal do porte do Diário do Amazonas tinha de reverenciar, nessa data, um sábio tão importante para nós da Amazônia (Ver Taquiprati, 30/11/2008 – Lévi-Strauss: tão perto da Amazônia).

Perto da Amazônia

Lévi-Strauss, um dos maiores pensadores contemporâneos, celebrado no mundo inteiro, está tão perto de nós, não só pela locução do Moreira, mas porque sua obra deu visibilidade à região. Ele estudou as culturas amazônicas, recolheu mais de 800 mitos ameríndios e equiparou os conhecimentos indígenas às mais altas reflexões da civilização ocidental, chamando atenção para a contribuição que os índios deram à humanidade com suas formas de pensar.

Seu grande mérito foi ‘abrir’ a cabeça dos índios para ‘ver’ o que tinha lá dentro. Gostou do que viu e comparou o pensamento indígena com o ocidental, revelando que aqueles índios nus, considerados até então “atrasados”, eram capazes de elaborar um pensamento sofisticado, de fazer classificações no campo da botânica, da zoologia, da biologia, de criar conhecimentos. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, ele “tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século XVI e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie”.

Sua importância aparece, ainda, no filme Lévi-Strauss auprès de l’Amazonie, realizado por Marcelo Flores, um antropólogo brasileiro residente em Paris, que foi exibido pela TV Senado neste sábado, às 23:30 hs e será reprisado hoje, domingo, às 10 hs. A TV Senado colocou a íntegra do programa na internet, disponibilizando para cópia.

Pai do Carimbó

Um dia depois da morte de Lévi-Strauss, morreu em Belém do Pará, aos 93 anos, o Mestre Verequete, um nome igualmente importante para a Amazônia e para a cultura brasileira. Cantador e compositor de letras de carimbó, Verequete sobreviveu muitos anos vendendo churrasquinho numa barraca em frente à vila onde morava, no bairro do Jurunas, na periferia da cidade. Ele foi homenageado pelo presidente Lula, recebendo a Comenda da Ordem do Mérito Cultural.

Descansa em paz, comendador Verequete: “O carimbó não morreu / está de volta outra vez / o carimbó nunca morre / quem canta o carimbó sou eu”.

Caetano boçalóide

Caetano Veloso chamou Lula de “analfabeto”, reforçando o preconceito e a visão cartorial de quem acha que o saber é conferido apenas pela escola e pelo diploma. Ofende, dessa forma, os sábios desescolarizados do mundo da oralidade, entre os quais Verequete. Caetano, apesar da voz maravilhosa quando canta, quando fala só diz babaquice. Igual ao Moreira, Caetano não tem ‘estrotóra’ para discutir a cultura da oralidade.

 

 

 

 

 

 

 

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1 Comentário(s)

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Fabão comentou:
11/05/2010
Caetano não é um idiota completo. Só quando emite opiniões. É um gênio na sua profissão.
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