CRÔNICAS

Os sonhos de Manaus: poesia e psicanálise

Em: 22 de Outubro de 2023 Visualizações: 2672
Os sonhos de Manaus: poesia e psicanálise

“São vorazes os sonhos de Manaus: cortam em miúdos tudo o que a vista alcança”. (Aldisio Filgueiras. 2023)

Os sonhos de Manaus fazem parte da criação poética de Aldisio Filgueiras em um dos tantos livros sobre a cidade onde nasceu, o mais recente deles “Manaus, como se diz, como se vê”, lançado no sábado (14) na Academia Amazonense de Letras. Sua leitura nos convida a refletir sobre a recuperação dos sonhos, tarefa da psicanálise, que envolve outras instâncias do saber, entre elas a poesia, segundo o médico psiquiatra amazonense Manoel Dias Galvão, que comprovou a voracidade dos sonhos na luta antimanicomial por ele travada.

Essa associação entre poesia e psicanálise surgiu quando, buscando outros livros de Aldisio sobre Manaus, encontrei entre meus alfarrábios, o boletim “Causa Analítica” de agosto de 1995, publicado no Rio em edição bilingue português x espanhol, cujo representante no Amazonas era Manoel Galvão, ele também autor de livros e artigos de importância indiscutível. Convivi com os dois, com quem muito aprendi.   

- Há um total desprezo pelos sonhos na nossa região. Por isso, tudo aqui é provisório. A psicanálise tem muito a fazer neste recanto tropical – disse Galvão, que defendeu as terapias de grupos, “porque é nelas que os pacientes descobrem a importância da palavra na cura. É nelas que ficam sabendo que os medicamentos não curam e que muitas vezes encobrem e disfarçam os conflitos. Os pacientes aprendem a associar e a dar valor aos sonhos”.

As muitas cidades

- “Ah! A poesia aqui / meu filho / é uma doença tropical” – diagnosticava em 1976 em Malária e Outras Canções Malignas, o nosso querido poetinha, “o poeta dos estilhaços da amazonidade que revolve, página por página, a mata destruída e a encenação das palavras num corpo a corpo com a língua portuguesa” – segundo o escritor Márcio Souza em A Expressão Amazonense.

Vale lembrar aqui outros livros de Aldísio sobre Manaus. Na apresentação ao Nova subúrbios (2006) a arquiteta Ana Lúcia Abrahim registra que se trata de uma leitura imprescindível para todos os que se interessam pela gestão da cidade – arquitetos, políticos, engenheiros, estudantes, cientistas sociais:

- Aldisio é um poeta do urbano – dos fatos, das cores, dos sons urbanos. A cidade de Manaus é mais que sua musa: ela é o seu “outro”, o seu próximo, o seu inferno pessoal de lucidez. O poeta cria uma nova geografia urbana e funda um lugar para aprender um novo idioma – a cidade” – escreve Ana Lúcia.

Os outros livros apontam na mesma direção. Lourival Holanda, doutor em literatura pela USP, no prefácio a Manaus, as muitas cidades” (1994) lembra que a poética de esconjuro de Aldisio transfigura o desespero em canto, “um canto de galo com crista, garras e asas erguidas”, cuja poesia retrata “essa Manaus atual, maquiada em moderna – e que se aliena de si”.

Com uma história literária fundada na coerência, no rigor literário e no espírito crítico como observou o professor e poeta Tenório Telles, Aldísio “abriu um caminho em meio ao cipoal de dúvidas e armadilhas, forjando uma expressão inquietante prenhe de questões, sonhos e duras verdades” – segundo Vinicius do Amaral, doutor em história pela Universidade Federal Fluminense na apresentação do livro recém-lançado.

Lacan e outros bichos

O poeta e o médico psiquiatra compartilham a visão sobre os sonhos e disparam na mesma direção, cada um no seu campo. Na entrevista à Causa Analítica, Manoel Galvão descreve e critica, com seu estilo contundente, o desenvolvimento da psicanálise no Amazonas, sua inserção social em Manaus e os projetos para o ensino da psicanálise na região. Critica o que denomina de “picaretagem” aqui existente:

- A maioria das pessoas que se intitulam psicanalistas na cidade de Manaus não tem nenhuma formação nesse campo do saber. Muitos são aventureiros, colonizadores que tiram proveito da ignorância reinante, tanto dentro como fora do meio universitário. A esmagadora maioria não conhece sequer a obra de Freud.

Galvão polemizou e escandalizou a área médica e o próprio segmento da psiquiatria quando entre 1978-79 começou a abrir os portões das enfermarias para permitir que os pacientes psiquiátricos pudessem circular. “Ele não queria ser carcereiro e se manifestou contra a lógica da ideologia manicomial” – disse seu colega, o psicanalista Rogélio Casado.

Para Galvão, não é possível conceber a psicanálise sem discutir formas de inserção social. No entanto, no Amazonas, essa forma de abordar o modelo psicanalítico contradiz os seus princípios:

- Vivemos numa região onde a Psiquiatria é um império e os psiquiatras, que se interessam pela Psicanálise, fazem-no para difamá-la, uma vez que se limitam a papaguear Lacan e MD Magno, mas na prática usam medicamentos. Há grandes estudiosos de Lacan que tratam as fobias com antidepressivos. É Lacan devidamente amazonizado ou ama-zonado.

Sueños son

Ignoro o destino dos projetos de pesquisa de Galvão, depois do acidente que sofreu, sei que envolviam várias áreas interdisciplinares da Universidade do Amazonas e os esforços para a criação da primeira Escola da Causa Analítica na região, além de cursos de especialização:

- Não sei se posso me expressar desse jeito: chega de sacanagem. É preciso que o amazonense fale. Acredito na psicanálise como um instrumento de cura de nosso assujeitamento, como aquilo que nos permite de fato existir – disse Galvão, esclarecendo que é preciso levar os sonhos a sério.

- Toda la vida es sueño y los sueños, sueños son – cantava, em 1635, Calderón de la Barca. Os sonhos de Manaus abordados pelo poeta e pelo psiquiatra são pesadelos hoje envoltos em fumaça provocada pelos incêndios na floresta do entorno, pela forte onda de calor e pelo período de seca dos rios. A fumaça entra pela boca ou nariz, invade as traqueias e o pulmão, causa danos nas vias respiratórias e asfixia os moradores em maior ou menor grau, dependendo do bairro e da arborização nele existente.

Manaus massacrou os seus poetas, pintores, músicos e malucos de todos os matizes – aqueles que mais te amaram - cantou em 1987 o poeta em Ai de ti, Manaus. Um com sua poesia, o outro com seu discurso no campo da psicanálise, ambos tentam recuperar o oxigênio para alimentar o lirismo e a inteligência que a cidade precisa para respirar nesta conjuntura de desencanto da humanidade.

Referências bibliográficas:

Aldisio Filgueiras:

1. Malária e outras canções Malignas. Manaus.  Edições GEA. 1976

2. Manaus, as muitas cidades. Manaus. Edição do Autor. 1994

3. Nova Subúrbios. Manaus. Editora Valer/EDUA. 2006

4. Manaus, como se diz, como se vê. Manaus. Editora Valer. 2023.

Manoel Dias Galvão

1. História da Medicina em Manaus. Manaus. EDUA. 2003

2. História do Internamento Psiquiátrico na Cidade de Manaus. (coautoria com Nascimento, Cunha). Revista da Universidade do Amazonas. V 6/7, p.61-99. 1998

3. Como funciona a Psicanálise. Manaus. Valer. 1999

4. O sintoma na Psicanálise e na Psiquiatria. O (im) possível Diálogo entre Psicanálise e Psiquiatria. São Paulo. Lettere. 2003. P.50-79

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9 Comentário(s)

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rodrigo comentou:
25/10/2023
Excelente crônica professor. Muito interessante o livro do autor Aldisio FIgueiras (Manaus,como se diz, como se vê), que pretende abordar a psicanálise, a recuperação dos sonhos, além de falar sobre Manaus, com certeza está imperdível. Envio aqui dois links a respeito do livro do Aldisio: • Cobertura do lançamento do livro: "Manaus, como se diz, como se vê" pelo canal ON Jornal do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=yVR3xnKNBdQ • Site da Editora Valer para compra do livro online:: https://www.editoravaler.com.br/index.php?route=product/product&product_id=1479&search=Manaus+como+se+diz+como+se+v%C3%AA Um abraço querido professor
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Robson Tavares comentou:
22/10/2023
Como disse Lourival,. Aldisio transfigura o desespero em canto e encanto.
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Astrid Lima (via FB) comentou:
22/10/2023
Excelente artigo Ribamar. Não vejo a hora de ler a última criação do Aldisio, amo a poética dele que nos leva a pontos de observação e sentires sempre surpreendentes
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Ana Silva comentou:
22/10/2023
Teus textos são oxigênio e lucidez nesses tempos de incertezas e futuros duvidosos, Bessa. Adorei!
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Lúcio Flávio Pinto comentou:
22/10/2023
Publicado em A AGENDA AMAZÔNICA DE UM JORNALISMO DE COMBATE - https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2023/10/22/os-sonhos-de-manaus-poesia-e-psicanalise/
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Tania Pacheco comentou:
22/10/2023
PUBLICADO VERSÃO DIGITAL EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2023/10/22/os-sonhos-de-manaus-poesia-e-psicanalise-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Ana Lucia Abrahim comentou:
22/10/2023
Parabéns pela crônica, amigo Bessa! Nosso poetinha é uma maravilha, nosso patrimônio!
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Lúcio Flávio Pinto comentou:
22/10/2023
Publico este artigo de Bessa sobre Aldísio com um refluxo melancólico dos anos 1970, quando constantemente ia a Manaus e convivia com a turma de lá. Uma Manaus, como a minha Belém, que está desaparecendo, em parte por não sonhar, e, sonhando, não buscar utopias para resistir ao mimetismo camaleônico colonial. Quantas aventuras vivemos e histórias contamos nessa época. Aldísio podia recuperá-las para a memorialística e a literatura, que cada vez mais se tornam estéreis.
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
22/10/2023
Conheci nosso poetinha quando estudávamos juntos, no primeiro ano do clássico, no glorioso C.E.A. o que denuncia nossa antiguidade. Parece que estou na neblina de Manaus, mas lembro que emprestei a ele a edição de O Muro, do Sartre. Sacanagem, comentamos depois sobre um conto no qual o surrealista fala de uma mulher tentando bater uma punhetinha em um pobre, fracassado e brocha surrealista. Ou não. Os sonhos e a memória são gêmeas na forma do Calderón. Depois, além dos livros, muita cachaça, uísque ou o que pintava enquanto andávamos pelas ruas das noites amazonenses, em serenatas que hoje não existem mais, Aldísio tocando violão e eu acompanhando, quando podia, na caixinha de fósforos. E muitas vezes desde então, quando nos encontramos, até esse último e embriagador "Manaus, como se vê, como se diz". Não parei até o final dessa cachaça. Puta livraço, que a Maria José também devorou. Do Dr. Galvão curto mesmo sua aparição em um romance do Márcio, que o coloca como formulador e difusor da teoria da leseira baré, que explica tudo. Agora então, com o fumacê da destruição da floresta, a doença se espalha célere. Se Manaus sufocou com as experiências conduzidas pelo general intendente, o fumacê parece que vai arrematar. Eita, mano, até quando sobreviveremos?
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