CRÔNICAS

A Copa do Mundo, o pirarucu e o tambaqui

Em: 26 de Novembro de 2022 Visualizações: 2986
A Copa do Mundo, o pirarucu e o tambaqui

Hoje eu não quero pescar, quero ver a Copa rolar”.

(Chico Malta, 1994).

O chute de Richarlison no gol de voleio furou a rede, a bola sobrevoou o bairro de Aparecida, em Manaus e foi cair lá em Santarém (PA). Era o fim da COP-27 sobre mudanças climáticas e o começo da Copa do Mundo. A atenção de milhões de pessoas se deslocou do Egito para o Catar. Mas meu olhar solitário e fiel seguiu a bola até o rio Tapajós para assistir a Copa Iara disputada nos igarapés e lagos por pirarucus e tambaquis. O “Pombo” é o craque das três copas.

Nem sempre o que a coluna de um jornal publica é aquilo que querem ler as pessoas atraídas por fugazes fatos midiáticos. Vale a pena, porém, perder eventual leitor só para seguir Richarlison, o capixaba de família pobre que, fora do gramado, combate o racismo, o negacionismo e a queimada da floresta, tal qual a Copa Iara criada pelo professor e palhaço Magnólio de Oliveira, que coordenava a equipe de educadores ambientais, entre os quais, figurava o  poeta popular Chico Malta. A Copa da Fifa dura apenas um mês, mas a Copa Iara permanece imorredoura.

Nascido em Santarém, o músico e arte-educador do Projeto Iara/Ibama, Francisco Cardoso Feitosa, ganhou o apelido de Chico Malta, quando era balconista em uma loja e usava chapéu igual ao do Sinhozinho Malta, personagem de Lima Duarte na novela Roque Santeiro. Descendente de Munduruku por parte de pai e de Waiwai pelo lado materno, ele tem mais de 400 composições poéticas inspiradas nas narrativas míticas, nos rituais e nas culturas dos povos do Tapajós.

Uma delas é Selva Amazônica gravada em videoclipe do Globo Ecologia antes da ECO-92, no Rio, onde ele se apresentou como animador cultural em vários shows, assim como no programa da TV Aberta da TV Record. Escreveu ainda várias peças teatrais encenadas por atores de Santarém e publicou o livro de poesias Sant´Além das Linhas imaginárias, no qual canta as belezas da Amazônia. Gravou discos, entre eles Os Encantos da Iara.

Copa da Iara

IARA foi justamente a denominação dada a um projeto do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, desenvolvido nos governos de FHC e depois no de Lula, quando a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, incrementou o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, muito antes da barbárie instalada no país pelo presidente agora derrotado nas urnas.
Realizado em parceria com a GOPA, empresa independente de consultoria com sede na Alemanha e filiais em vários países, o projeto buscava o desenvolvimento de soluções integradas. Para isso, dedicou atenção às peculiaridades culturais regionais e, além das equipes multidisciplinares internacionais, incorporou desde sua fase inicial os saberes e os sábios locais para garantir a sustentabilidade ambiental. E é aqui que entra Chico Malta, Mestre de Carimbó, título a ele concedido pelo Ministério da Cultura.  

Beneficiado com bolsa do CNPq para trabalhar como arte-educador no Projeto Iara/Ibama/Gopa-Gtz, Chico, que mora atualmente em Alter-do-chão, publicou o livro O Canto da Amazônia com músicas cifradas de sua autoria, compôs Músicas Educativas para o projeto Saúde e Alegria e Cantando com a Bandoca do Ponto de Cultura da Oca/Minc, todas elas deliciariam Rolando Boldrin, recentemente falecido.

Durante a Copa da FIFA nos Estados Unidos, em 1994, Magnólio Oliveiro, que já nos deixou, criou a Copa Iara, como uma estratégia de educação ambiental, destinada a promover o diálogo entre arte, pesquisa e pescadores, um deles era Chico Malta, que  assegurou “marcar ômi a ômi ao som do apito”. Na música Tambaqui & Pirarucu ele canta que os peixes vão acabar se comermos os bodecos – filhotes de pirarucu e os bocós – filhotes de tambaqui, como estão fazendo no Alto Solimões os assassinos de Dom e Bruno. Sua cantoria foi um trabalho integrado que gerou várias cartilhas com histórias em quadrinhos para administrar os recursos pesqueiros do Médio Amazonas.

:Bodecos protegidos

Os dois peixes mais ameaçados, capturados com tamanho cada vez menor, sem chance de desovar pelo menos uma vez, figuram em duas cartilhas – O Pirarucu e O Tambaqui – com texto de Maria Paula Bonatto, professora e pesquisadora da Fiocruz-RJ. Lá, fica claro que para “ter peixe pra todos o tempo todo”, é preciso combater a pesca predatória que usa malhadeiras de náilon, motores a diesel, isopor com gelo e até frigoríficos, o que ameaça a sobrevivência das espécies.

O pirarucu, com escamas cinzentas e cauda castanho-avermelhada, pode medir até 3 metros e pesar 200 quilos. Ele se alimenta de peixes, insetos e vegetais da beira dos lagos. Os pescadores dizem que na fase de namoro e reprodução, a cabeça da fêmea, toda faceira, fica arroxeada, enquanto o macho tem a parte de cima escurecida e a barriga e a cauda com um sedutor tom vermelho. Assim, eles se atraem e formam casais para se reproduzirem.  

- Na época da desova da fêmea, o casal constrói o ninho, cavando um buraco no fundo do lago. O macho, preocupado com os ovos ali depositados, não arreda de lá, fica só agitando suas nadadeiras para arejar o berço. A fêmea, por sua vez, fica mais afastada e como uma sentinela zelosa defende os filhotes botando pra correr as piranhas que querem atacá-los. Se nessa fase pai e mãe são capturados, fiau babau, as criancinhas não sobrevivem.   

O pirarucu-pai, que é uma verdadeira mãe, protege os filhotinhos em sua própria boca, ali no quentinho, e só começa a soltá-los após uma semana, a partir do qual eles se penduram no toco do cangote do pai. Levam cinco anos para se tornarem adultos. Antes disso, bodecos não devem ser pescados. Quando caem nas malhadeiras de pescadores indígenas e ribeirinhos, são devolvidos rapidamente à água, ainda vivos. “O cuidado com eles e a proteção de suas vidas ajudam a garantir alimento aos nossos netos e bisnetos” – diz a cartilha.

Tambaqui pra ti

Quem tem também sua “pequena enciclopédia” é o tambaqui, um peixe que gosta de sombra e água fresca dos lagos, igapós e florestas inundadas da várzea, onde fica debaixo de árvores, só espreitando a queda de frutos na superfície da água, que ele engole antes que afundem, como o agridoce bacuri, as nozes do jauari, o socoró de sabor adocicado e a azeitona do mato, conhecida como tarumã.  

Seus filhotes, os bocós, permanecem nos lagos para se alimentar e crescer, mas estão ameaçados pelo desmatamento que os deixa sem comida, pela pesca predatória feita antes que possam desovar e pelo garimpo, que contamina rios e lagos. Na história em quadrinhos com texto de Paula Bonatto e arte de Haroldo César, a personagem, que é doutora, observa o pescador Sabá devolvendo ao rio os filhotes, com quem conversa.

- Mas o senhor fala mesmo com bocó, seu Sabá?  - ela pergunta incrédula.

- É conversando que a gente se entende, né doutora? Eu tô falando pra eles que eu quero comer eles mais tarde, quando já tiverem desovado.

O bocózinho respira, solta borbulhas e diz:

- Ufa! Escapei dessa por pouco.

As lições de manejo da pesca, embora carregadas de beleza e poesia, não são literatura de ficção, mas resultado de milênios de observação e de convivência dos povos do Tapajós, referendados por publicações científicas citadas no final das cartilhas, para consulta de quem quiser saber mais.

Provavelmente o “Pombo”, autor do gol de voleio na Copa da Fifa e, fora dela, comprometido com a vida na floresta, nos rios e até com a sobrevivência das onças no Pantanal, gostaria de ler essas cartilhas, assim como outras do mesmo projeto, que propõem aos ribeirinhos fontes alternativas à pesca, como a criação racional em cativeiro de capivaras da região do Tapajós.    

- Verde calmo e silencioso desce o lindo Tapajós. Parece que tem segredos que não quer contar pra nós - canta Chico Malta no meio da Copa Iara. Esses segredos começam agora a ser revelados.

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16 Comentário(s)

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Farney Tourinho comentou:
29/11/2022
O Richardson Precisa Ser Alçado como Embaixador das Questões Ambientais e/ou Autoridade Ambiental. Acredito que será de Fundamental Importância.
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Heliete Vaitsman comentou:
28/11/2022
Tudo interligado, e tão bem escrito que quem nunca viu esses rios, nem conhecia o poeta, sente uma súbita saudade deles!
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Idemburgo Frazao: comentou:
28/11/2022
Salve o Pombo. Que faça três Lá, hoje. Bom jogo. Um abraço fraterno.
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Maria Paula Bonatto comentou:
28/11/2022
Meu amigo, Adorei que vc leu as cartilhas, que presente lindo esse texto! Como você juntou bem os momentos... Amo você e seus textos! Máxima admiração e respeito!!! Também adoro as ilustrações do Haroldo. Quanto ao Magnólio, mesmo em outro plano, continua nos inspirando sempre.
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Hans Alfred Trein comentou:
28/11/2022
Obrigado, Bessa, por mais esse texto inspirador. O COMIN, através do colega Walter Sass, realizou junto aos Deni um projeto de manejo do pirarucu que resultou em certificação do IBAMA, para uma depesca responsável e sustentável, tomando exemplo num projeto já em andamento no Mamirauá. Os Deni, tendo à frente o seu cacique Saravi, aprenderam rapidamente a contar os pirarucus (que tem de aflorar a cada 20 minutos para puxar ar) de seus 165 lagos dentro da sua terra demarcada. Que os pirarucus protegem seus filhotinhos de ataques dentro da própria boca foi grande novidade. Abraços, com um advento de muita esperança para a sustentabilidade amazônica, Hans
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rodrigo martins vasco 777 comentou:
27/11/2022
Um viva a Copa Iara, um viva ao grande artista popular Chico Malta, um viva ao Richarlison que além de ser um grande jogador está sempre engajado nas causas sociais e claro um viva ao camisa 10 do Taquiprati José Bessa Freire que marcou mais um gol de placa com essa excepcional crônica. Um abraço querido professor.
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João Paulo Tukano comentou:
27/11/2022
Professor Bessa. Como sempre inspirador
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Suzete Miranda comentou:
27/11/2022
Pode me dizer onde é que a gente pode encontrar essas duas cartilhas? Dá para reproduzir alguma página da história em quadrinhos?
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Cristina Oliveira comentou:
27/11/2022
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Tania Pacheco comentou:
27/11/2022
PUBLICADO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2022/11/27/a-copa-do-mundo-o-pirarucu-e-o-tambaqui/
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Euclides Coelho de Souza Dadá comentou:
27/11/2022
A relação da fêmea e do macho do jacaré com seus filhotes daria ótimas cenas no teatro de bonecos. A pesca me interessa muito. Passei a minha infância na Serra da Lua, em Roraima, pescando. Eu remava a canoa de dois bancos na qual meu avô, munido de um arpão e de anzol, pescava muitos peixes, principalmente peixes muito menores do que o pirarucu, como o tucunaré, o pacu, o jundiá - peixe de couro que mora no fundo arenoso do rio e em remansos perto da entrada do canal, onde ele vai procurar se alimentar. História de peixe é sempre muito boa.
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Ana Silva comentou:
27/11/2022
Maravilha de texto, projeto e gol. Aliás um golaço essa crônica.
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Delayne comentou:
26/11/2022
Vamos viajando e aprendendo nos rios da sua crônica poética. Grata!????
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Márcio Pucu comentou:
26/11/2022
Professor Bessa a gente lendo o seu texto, mesmo sendo um manauara quase incauto, fica impressionado como as coisas acontecem na nossa natureza que poderiam ser melhor compreendidas e defendidas, principalmente pela forma muito bem explicitada no seu texto.
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Waldelice Souza comentou:
26/11/2022
Muito bonitos esses três gols, o gol propriamente, o projeto Copa Iara e o texto
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Celeste Correa comentou:
26/11/2022
Amei a crônica, mano! desconhecia totalmente a existência do Chico Malta e também o Projeto Iara. Super interessantes! Me esclarece umas coisas:. Esse Projeto ainda continua? Na época em que foi criado ele teve um grande alcance? a gente sabe que a internet só começou a se popularizar a partir do ano 2000 mas uma produção rica e vasta como o Chico Malta já merecia ser bem divulgada nas redes sociais e nas escolas, né. O relato que fazes dos livros dele pra mim são gritos de resistência na luta pela preservação da natureza e altamente educativos. Esses livros deveriam estar nas escolas porque a luta pela preservação passa pelo conhecimento e pela informação, né.
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