CRÔNICAS

O profeta Zé Keti: na fila do osso

Em: 10 de Outubro de 2021 Visualizações: 3202
O profeta Zé Keti: na fila do osso

“Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa /

E deixo andar, deixo andar”.   (Zé Keti. Opinião. 1964) 

Meninas, eu vi. Vi e ouvi o Zé Keti cantar seu samba “Opinião” no Teatro de Arena, em Copacabana, no show com João do Vale e Maria Betânia. Foi um deslumbramento para o amazonense de 18 anos que havia se pirulitado de Manaus, em 1965, com uma mão na frente e outra atrás para estudar jornalismo e direito no Rio. De repente, estava ali, a um metro de distância de três artistas, que ora cantavam, ora narravam suas vivências no tablado que servia de palco e permitia essa intimidade com o público. Uma semana depois, uma humilhante experiência me daria a dimensão do osso na sopa. Conto como foi.

Antes, uma advertência: ínvios e tortuosos são os caminhos e as armadilhas da memória! A lembrança do Zé Keti foi provocada nesta semana pelas discretas comemorações do centenário do compositor e cantor carioca nascido em 1921. A letra de “Opinião” adquiriu, então, um tom profético ao permitir sua associação com recentes cenas sinistras da fila do osso em várias cidades brasileiras.

- Tem gente que pega o osso e já raspa os fiapos de carne crua com os dentes, ali mesmo na fila – disse Samara Rodrigues, dona do açougue Atacadão da Carne, em Cuiabá. Ela contou chorando que nunca viu a fome tão de perto quanto na fila dos ossos. No (des)governo Bolsonaro, a fila cresceu assustadoramente. O número de brasileiros com fome duplicou nos últimos dois anos, são quase 20 milhões, conforme reportagem do “Fantástico”. 

É bem verdade que quando o cantor e compositor carioca cantou “Opinião”, logo após o golpe militar-empresarial de 1964, ele protestava contra a remoção forçada das favelas promovida pelo governador do Rio, Carlos Lacerda: “Daqui do morro, eu não saio não”. Mas agora a letra do samba se torna ainda mais dramática. Brasileiros em situação de extrema vulnerabilidade social disputam ossos e pelancas antes distribuídos a cachorros, sob o olhar insensível da classe empresarial e de seus representantes no governo, o ministro Paulo Guedes Offshore e Bob Fields Grandson, que trocaram o inferno fiscal do Brasil pelo paraíso da Suíça e das Ilhas do Caribe.  

Televisão de cachorro

Tal insensibilidade me fez evocar a experiência ocasional com a fome de um estudante provinciano pobre numa sociedade mendicante. O fato, circunscrito ao âmbito pessoal, carece de qualquer dimensão histórica. Embora irrelevante, ilustra de forma microscópica a desumanidade e indiferença daqueles que, podres de rico. humilham os famintos. Foi assim.

Sem ter onde cair morto, assisti ao show do “Opinião” graças ao professor Orígenes Martins, de quem eu havia sido aluno de Didática no Curso Pedagógico do Instituto de Educação do Amazonas. Diretor e dono do colégio Christus, ele me contratou naquela época para dar aulas no 5º ano do Ensino Primário. Daí nasceu uma amizade. Agora, de passagem pelo Rio, convidou seu ex-aluno para ir ao teatro e, em seguida, para jantar, bancando os gastos na véspera de seu retorno a Manaus. Beleza!

No domingo seguinte, o restaurante do Calabouço para estudantes estava fechado. Eu tinha, se bem me lembro, apenas Cr$500,00, o preço de um sanduíche de queijo no Bob´s, o que era insuficiente para matar a fome de um mancebo saudoso do feijão da mamãe. Precisava de algo mais consistente. Caminhei até a Cinelândia, Lá, na rua Álvaro Alvim, o restaurante Spaghettilândia, que continua ainda hoje no mesmo endereço, oferecia um espaguete à bolonhesa com resíduos de carne moída por CR$700,00 Era o que havia de mais barato no menu.

Sai explorando os arredores, em busca de algo compatível com o capital que dispunha onshore, digo, no meu bolso. Na rua Senador Dantas, o restaurante Olona, que permanece atualmente no mesmo lugar, oferecia um prato de talharim ao alho e óleo ao preço de Cr$600,00, ou seja, aproximadamente 0,8% do salário mínimo, que na época era Cr$84.000,00. Fiquei ali, como um cachorro diante de uma máquina de assar frango, olhando o movimento e criando coragem para “entrar na fila dos ossos”.

Acender as velas

De repente, saiu do restaurante um senhor bem vestido que acabara de almoçar. Nunca esquecerei suas feições. Nunca. Ele parecia fisicamente com o Professor Scaramouche, o vilão do filme Aviso aos Navegantes, vivido por José Lewgoy. Não tinha a barbicha do personagem, mas era o mesmo formato do bigode. Parou na porta para acender um cigarro. Levantou a sobrancelha espessa. Aproveitei o momento, me aproximei e falei bem baixinho, discretamente, de cabeça baixa, mostrando as notas do dinheiro na mão como nos filmes em branco e preto do neorrealismo italiano:

- Me desculpe. Sou um estudante amazonense. Estou com fome. Tenho esses Cr$500,00. Preciso de Cr$100,00 para poder comer um prato de macarrão. Será que o senhor pode completar?

Cem cruzeiros era o preço de um cafezinho. Se ele me desse pequena parte da gorjeta do garçom, matava minha fome. Sua reação, no entanto, foi outra. Berrou em voz alta, tornando pública a humilhação ao chamar a atenção de todo o restaurante e até de quem passava na rua:

- Vai criar vergonha, vai trabalhar. Um moço forte, que esbanja saúde, pedindo esmola como um vagabundo...

Santo remédio. A fome passou. O lado positivo do episódio foi que economizei os Cr$500,00. Fugi dali em disparada, tão humilhado, que perdi até a vontade de comer o sanduiche de queijo no Bob’s e nem tive ânimo para pegar um osso e colocar na sopa.

As cenas de gente atrás dos ossos, me fez evocar as diversas fomes, a minha e a histórica, que a humanidade sofre nos períodos de barbárie. Lembrei o samba do Zé Keti, filho de um marinheiro tocador de cavaquinho que morreu cedo. A criança tímida de três anos educada pelo avô flautista e pianista legou ao Brasil um vasto repertório de mais de 200 músicas. Participou de vários filmes como ator e como assistente de câmara e atuou no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Talvez seja desconhecido das novas gerações que, apesar disso, cantam suas músicas no carnaval, entre elas a famosa marcha-rancho Máscara Negra.

José Flores de Jesus, o Zé Quieto, o Zé Quietinho, o Zé Keti, se despediu da vida em 1999 cantando: “O doutor chegou tarde demais [...] E a gente morre sem querer morrer”.

Meninas, eu vi o Zé Keti da Portela cantar no show do Opinião: “Acender as velas / já é profissão / quando não tem samba / tem desilusão”.

P.S – Nesta quinta (7), Conceição P. de Souza descansou, deixando saudosos sua filha Janaína, seu genro Amaro Júnior, suas netas Beatriz e Mariana, além de Ângela Maria, em cuja casa viveu durante quase vinte anos em Manaus.  Fica aqui o registro dos sentimentos da coluna Taquiprati.

Por ter perdido a visão, ela não pôde ler o livro recomendado por sua amiga Maria do Céu “A morte é um dia que vale a pena viver” escrito pela médica Ana Cláudia Arantes. Lá, a autora propõe repensar a existência e oferecer às pessoas a oportunidade de viverem bem até o dia da partida.

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17 Comentário(s)

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Ricardo Oliveira comentou:
14/10/2021
O Brasil original . O Rio de saudades
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Ana Silva comentou:
11/10/2021
Uau, que texto dilacerante.
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Rodrigo Martins comentou:
11/10/2021
Esse José Lewgoy cover mal conheci aqui na crônica e já tomei ranço. Agiu de forma desnecessária e covarde com o professor Bessa. Como é a vida,hoje o professor é um dos maiores antropologos indígenas do país, tem uma família incrível, alunos que o o admiram,autor de inúmeros livros, professor da Uerj da unirio, criou o proindio, trabalhou em grandes jornais, viajou o mundo e está indo em rumo de sua centésima banca de mestrado entre tantas outras conquistas pessoais e profissionais. Parece que o jogo virou não é mesmo senhor José Lewgoy Cover? O que sobrou para vossa senhoria é apenas esquecimento e o menosprezo de nós que somos leitores do. taquiprati. E realmente professor, muito triste esse Brasil onde a miserabilidade aumentou, preços exorbitantes sem qualquer perspectiva de melhora a curto prazo e população. Esperança por dias melhores, mas com esse governo negacionista ficamos cada vez mais desesperançosos. Abs querido professor!
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Orlando Respeita comentou:
10/10/2021
Vocês sabiam que é Zé Keti morava no Cafuba na década de 70 e algumas vezes viajei de ônibus com ele.
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Maria do Carmo Cardoso comentou:
10/10/2021
Bessa, gosto muito das tuas histórias, e esta me reavivou a memória dessa música, que me chegou quando vi a foto de pessoas pegando ossos.. Antes uma realidade não tão vista, hoje esfregada na nossa cara. Brilhante!
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Valter Xeu comentou:
10/10/2021
Publicado também em PATRIA LATINA - http://patrialatina.com.br/o-profeta-ze-keti-na-fila-do-osso/
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Serafim Correa comentou:
10/10/2021
Publicado também no BLOG DO SARAFA - https://www.blogdosarafa.com.br/o-profeta-ze-keti-na-fila-do-osso/
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Tania Pacheco comentou:
10/10/2021
Publicado TAMBÉM em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2021/10/10/o-profeta-ze-keti-na-fila-do-osso-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Mônica Rodrigues comentou:
10/10/2021
Na sua coluna da FSP de hoje, OS OSSOS DA ELEIÇÃO Jânio de Freitas escreve que o principal figurante de 2022 ainda está silencioso: é o aumento da pobreza: " Mesmo a corrida aos ossos despejados, para a guerra contra a fome, causou mal-estar ou indignação muito maiores mundo afora do que aqui, onde não faltou mais revolta com a exibição de ossos e catadores do que a realidade que os uniu, como antes fizeram os cães"
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Tania Pacheco comentou:
10/10/2021
Essa doeu mais que o normal, Bessa. Também estive lá - duas vezes, primeiro com Nara, depois com Bethânia. Também estudava Jornalismo, na época. E, certamente também como você, me deixei arrepiar por um misto de indignação e de certeza de que em breve venceríamos tudo aquilo. O "em breve" durou mais 20 anos. Mas o pior mesmo é que 56 anos depois chegamos à realidade abjeta atual. E o fizemos através do voto. Dói muito, mas a sua crônica é linda! Eu me fez sentir vontade de saudar também João Carcará do Vale, que contava em sua História: "Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar/ A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar/ .../ E quando era de noitinha, a meninada ia brincar/ Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:/ - O professor ralhou comigo, porque eu não quis estudar."
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Decio Adams comentou:
10/10/2021
José Ribamar Bessa Freire, sabe que há momentos em que, lendo suas crônicas, lhe invejo a riqueza de suas memórias. É um inesgotável repositório de histórias, que remontam à décadas passadas, quando vivenciou muitas situações que, infelizmente, o nosso país revive nos dias atuais. Um pouco diferentes, porém idênticas em seus significados humanos. Um abraço e obrigado por compartilhar com a gente esse rico, quase inesgotável estoque de histórias.
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Rosa Helena Mendonça comentou:
10/10/2021
Como sempre, muito tocante a sua crônica, Bessa! Fortes associações de quem “confessa que viveu”. E viva Zé Keti e suas “opiniões”!
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Carlos Walter Porto-Gonçalves comentou:
10/10/2021
Estimado amigo Bessa Trazes Zé Keti e sua sensibilidade sofrida/refletida em poesia. Não esqueça, amigo Bessa, que o Malvadez Durão, "valente mas muito considerado" morreu e o "criminoso ninguém viu". Seu corpo exposto com "4 velas acesas encima de uma mesa" e "uma subscrição prá ser enterrado". Essa subscrição, amigo, era comum nas favelas, era uma vaquinha para que fosse enterrado com dignidade. Ainda haveremos de recuperar essas práticas de ajuda mútua comuns entre os de baixo, amigo. Essa é que deve ser a inspiração. Falar nisso, amigo Bessa, estava eu em La paz e nua reunião um indígena falava o tempo todo de mutiró. Estranhando, Bessa, no intervalo fui falar com ele que tínhamos em português uma palavra parecida - mutirão. Ele, imediatamente, começou na falara português comigo deixando de falar o espanhol fluente que até ali falara. E me esclareceu, como bom guarani que era, que mutiró-mutirão-putirum é uma palavra tupi-guarani que significa ajuda mútua, da qual "a subscrição para ser enterrado" faz parte do repertório com que os de baixo fazem a vida se tornar possível com dignidade. O mesmo que as minga/minkas que se fazem em Lima, Quito, Bogotá, La Paz, Bueno9s Aires e Santiago que também é trabalho comum, o que me fez ver que houve uma colonização entre os de baixo para os de baixo que chegaram às cidades. Zé Keti registrou u=isso em suas poesias feitas no modo samba. .Com amizade e admiração, amigo Bessa. Carlos Walter
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Luiz Pucú comentou:
10/10/2021
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Lúcio Flávio Pinto comentou:
10/10/2021
Entre o golpe de 1964 e o golpe dentro do golpe em 1968, a resistência à repressão, a coragem de muitos e o talento de outros tantos criaram uma cultura maravilhosa, vibrante, comprometida com o seu tempo, sem deixar de ser exigente e buscar o melhor. Eu também vi o show na Siqueira Campos, quando Bethania substituiu Nara e com a Nara também. Eu ia fazer 16 anos. Quando a liberdade é sufocada, a condição humana é levada para o pasto ou diretamente para o abatedouro. Valeu, Bessa. PS - O livro não chegou. Algum admirador seu o confiscou. Será mais admirador seu do que eu? (Enquanto não bem a resposta, fica a rima gratuita).
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Cristina Vergnano (Tecendo o verbo) comentou:
10/10/2021
Sua crônica cala fundo na gente (ou melhor, grita com altos brados). Ando totalmente agoniada com tanta miséria: fome, violência de gênero e de etnia, descompasso ambiental beirando o apocalipse. Tento fazer algo a respeito, dentro das minhas possibilidades, mas sempre me parece irrisório. Sofro com o estado das coisas e sei que meu sofrimento nem chega aos pés do que o povo marginalizado anda sofrendo. Quero ver luzes brilhantes no fim do túnel, porém anda muito difícil. Para onde caminha a (des)humanidade? Sinceramente, não sei. Parabéns, como sempre, pela escrita certeira!
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
09/10/2021
O filhaputismo, infelizmente, não é de hoje e nem vai acabar tão cedo...
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