CRÔNICAS

O borogodó do bodó que contava histórias

Em: 06 de Outubro de 2019 Visualizações: 9121
O borogodó do bodó que contava histórias

Se eu ficar o tempo todo contando histórias, eu não vou desaparecer.

Patrícia Portela – Scheherazade Flatland

Cascudinho é o nome do bodó, um peixe amazônico da família Acari, que já andou contando uma ou outra história, em 2012, aqui nesta coluna do Diário do Amazonas. Agora, essas e outras viraram livro – “Cascudinho, o peixe contador de histórias” - que será lançado no final de outubro pela Editora do Brasil no 21º Salão da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) na Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro. As ilustrações coloridas de Luciana Grether, professora de Artes e Design da PUC-Rio, valorizaram tanto o texto que até o próprio autor, ao ver as imagens, sentiu uma vontade danada de ler o que ele mesmo escreveu.

O nosso Bodó, filho da dona Acari-Nhosa, mora no lago Espelho da Lua, que tem esse nome porque a lua cheia, em noites de plenilúnio, mergulha naquelas águas prateadas, que hospedam assim a colossal tapioca de beiju. Mas o lago fica longe da Escola do Igapó, onde ele estuda. Diariamente, quando a professora Piraíba, a tia Laulau, faz a chamada, Cascudinho está ausente. Chega sempre atrasado, já na hora da merenda. Para se justificar, inventa histórias mirabolantes, como o engarrafamento no rio Amazonas invadido por milhares de cardumes, numa piracema que dá nó no trânsito.

Cada dia é uma história diferente, mas não vamos dar spoiler aqui. Podemos adiantar que a hora em que ele contava suas histórias era como a novela das nove, todos os outros peixes vinham ouvi-lo. Sua imaginação não tinha limites, dominava a arte de narrar com maestria, incorporava os personagens, explorava as qualidades retóricas, com pausas estudadas, altura de voz modulada, abrindo e fechando teatralmente a boca em forma de ventosa e mexendo a nadadeira dorsal para dar realismo às cenas.

O bodozal

O sabor das histórias narradas fez com que outros peixes tivessem uma visão diferente daquela dos humanos registrada por Sérgio Freire, o nosso “Aurélio caboco”, em seu magistral dicionário Amazonês: Expressões e termos usados no Amazonas. Lá Bodozal designa “bairro pobre, periferia, sem água encanada e sem esgoto”. É que o bodó tem fama de feio, de sujo, porque quando as águas do rio baixam, ele cava buracos no barranco e fica chafurdando na lama. No entanto, Cascudinho encantava os demais peixes, como se estivessem todos enfeitiçados pelo maior hipnotizador do Amazonas, o famoso Pão Molhado, conhecido como Wet Bread.

Dizem que quem é feio fica bonito quando conta histórias. Por isso, diziam que além de bonito, Cascudinho ficava cheiroso e charmoso. Diziam que na hora de narrar, o Bodó soltava borbulhas de amor e sua cintura ficava bordada por algas e corais. Por causa dele, um músico cantou que queria ser um peixe. Mas essa boniteza não impediu que ele adquirisse a fama de dissimulado e mentiroso. Alguns peixes invejosos, como a Cunhantã Matrinxã, cheia de espinhas, com três fileiras de dentes, o acusava de ser trapaceiro.

- Quero ver minha mãe Acari-Nhosa mortinha num aquário ou numa rede de pescar se isso não for verdade – dizia Cascudinho, que jurou: “Cruz de Aço, cruz de ferro, se estou mentindo vou pro inferno”.    

Algumas de suas histórias, bem-humoradas, provocavam risos, numa delas Cascudinho recitou um versinho do saudoso Paulo Bonequeiro para uma pirajica, que rebolava sua nadadeira caudal em forma de forquilha e pela qual se enamorou:

- “Tudo bem, amada? Eu rio, rio... Você: nada?”.

Cascudinho achava que “amor de pirajica, onde bate, fica”. Ele, seus amores e seus amigos. Numa das histórias, encontra no rio Solimões o Axolote que, perseguido pela ditadura das piranhas no México, fugira do lago Xochimilco para vir se asilar no Amazonas. Fez amizade com este peixe asteca, que ao contrário de qualquer ser vivo, já nasce velho e morre quando fica bebezinho.

O filho da truta

No penúltimo dia de aula, Cascudinho jurou que retornou ao passado, ao subir o rio Negro, onde testemunhou a criação do mundo de dentro da cobra-canoa. Descobriu, então, que todos os seres vivos somos filhos da Avó do Mundo fecundada pela Música. Foi aí que a tia Piraíba levou o bodó ao médico, o doutor Sapo Tarobequê que concluiu ser o paciente um “sonhador compulsivo” e diagnosticou um “transtorno de devaneio excessivo e mal adaptativo”. Para curá-lo, Cascudinho devia agir como seus colegas e obedecer os horários.

Vários seres aquáticos, entre os quais o Boto Jurandir, o Jacaré Lelé e o José Carlos Sardinha, combinaram:

- Araruta, araruta, quem chegar atrasado amanhã é cria da truta.

Cascudinho colocou o despertador e, no dia seguinte, acordou bem cedinho. Mas no caminho aconteceram, de fato, coisas inacreditáveis, impedindo-o até de aparecer na hora da merenda. Todo mundo sentiu sua falta. Quando ele chegou no final da aula, só quem acreditou nele foi a Zezé Tucunaré, que correu para contar tim-tim por tim-tim à Traíra Elisa, sua avó.

- Você é mentiroso? Perguntou Jaú Dudu.

- Sim, sou mentiroso.

Um silêncio constrangedor tomou conta da Escola do Igapó, quando o apapá amarelo, que é uma espécie de sardinhão, disse:

- Ora, se Cascudinho é mentiroso, isso significa que ele está mentindo na hora que diz que é mentiroso, portanto, se ele está mentindo é porque o que conta é verdade.

A fantasia

Foi aí que a Zezé Tucunaré fez uma reflexão sobre o ato de narrar, a função da história e o sentido da fantasia, num discurso que ecoou pelos rios da Amazônia, ouvido atentamente, entre outros, pelo Manu Pirarucu, o Cuiu-cuiu e o Aruanã, na primeira fila da beira do rio:

- Peixes amazonenses da capital e do interior do estado, meus companheiros e companheiras de lutas e de ideais.

A Tucanaré prosseguiu, ponderando que a vida não é só aquela que um peixe viveu, mas o que ele recorda e como recorda ao narrar. Citou Nabokov, que gostava de nabo e couve, para quem “a memória é um músculo da imaginação”. A arte não é um relatório do que vemos, mas uma narrativa que nos faz ver. Uma boa história não é uma fotografia 3 x 4 da realidade, mas “uma mentira que nos aproxima da realidade”, como queria Picasso. A Tucunaré reivindicou ainda a existência de um outro patamar de verdade:

- Se uma história criada pela fantasia nos ajuda a compreender o que antes era incompreensível, se nos ajuda a ver o que antes não víamos, passa a fazer parte do nosso mundo e dá sentidos a ele.

Exemplificou com as histórias do Cascudinho vividas por 61 atores aquáticos. Embora sem a pretensão de ser um minitratado de ictiologia, apresentam um painel de peixes da bacia amazônica, destacando algumas características básicas de cada um. Operação similar está no conto “A sogra do Jacamim”, recolhido por Barbosa Rodrigues no Amazonas, cujos protagonistas são os pássaros, que inspiraram Cascudinho junto com o livro Tiddler, the story-telling fish escrito por uma inglesa, Julia Donaldson e ilustrado por um alemão Axel Scheffler.

No final, Cascudinho pula para a terceira margem do rio e se despede:

- Era uma vez a rainha Vitória, soltou um pum e se acabou a história.

P.S.1 – Nesses tempos sombrios de barbárie e de fake news, de violência institucional contra os índios, a floresta e os rios, podemos buscar a literatura, o conto, a poesia, a música, a arte, que nos humanizam e são sempre refúgio de reflexão para que a gente não fique como eles. Ele não!

P.S. 2 – Como alguns amigos perguntaram como adquirir o livro, ele pode ser encontrado em Manaus, na Rua José Clemente, 608 e no e-commerce https://lojavirtual.editoradobrasil.com.br/

 

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

10 Comentário(s)

Avatar
Magela Ranciaro (via FB) comentou:
07/10/2019
Socorro Andrade, Paula Andrade, Ivone Andrade. Vejam que inspirador esse conto... bom para contar pra criançada do Parque da Criança ou quem sabe transformar a narrativa numa peça de teatro da Companhia Metamorfos
Comentar em resposta a Magela Ranciaro (via FB)
Avatar
Eunice Dias de Paula (via FB) comentou:
07/10/2019
Sua imaginação não tinha limites, dominava a arte de narrar com maestria...é um auto-retrato, professor! Parabéns!
Comentar em resposta a Eunice Dias de Paula (via FB)
Avatar
Roque da Costa Gomes (via FB) comentou:
07/10/2019
O Paulo Bonequeiro é um grande poeta. Vc. pode me informar por onde ele anda? Tudo bem amada, eu rio, rio, você nada.
Comentar em resposta a Roque da Costa Gomes (via FB)
Avatar
Lucia Hussak comentou:
07/10/2019
Querido Bessa, Que legal! Vou comprar um exemplar para minhas netinhas, sem falta!
Comentar em resposta a Lucia Hussak
Avatar
Diógenes Sequeira Ramos comentou:
07/10/2019
"Amazonenses da capital e do interior do estado" : não era assim que Mestrinho ou Plinio Coelho começavam seus discursos em campanha eleitoral?
Comentar em resposta a Diógenes Sequeira Ramos
Avatar
Eloina Prati comentou:
05/10/2019
Parabéns pelo livro. Muito sucesso. Fiquei com vontade de ler e vou procurar comprar para minha bisnetinha, leitora de 6 anos, que de certo vai adorar. Abração, Eloína
Comentar em resposta a Eloina Prati
Avatar
FELIPE J LINDOSO comentou:
05/10/2019
Babá, "Quando a lenda é melhor que o fato, imprima-se o fato". Que peixe seria o homem que matou o facínora?
Comentar em resposta a FELIPE J LINDOSO
Avatar
Rodrigo Martins comentou:
05/10/2019
Linda crônica professor, o livro do Cascudinho está lindíssimo, como diriam os jovens: está top! Ainda não li, mas estou curioso para conhecer o querido Cascudinho. Será que ele é um peixe vascaíno? rs Professor, eu não tenho muita certeza, mas acho que conheço esse autor, se não me engano ele também escreveu o incrível livro chamado Rio Babel , participou do Amazônia das Palavras e orientou um menino muito simpático que fez uma dissertação sobre o estádio de São Januário. Ele é nota 1000, comprem o livro dele amigos eu garanto que irão gostar muito! Você internauta que está lendo a minha mensagem nesse momento, gostaria de pedir licença pois estou aqui hoje para anunciar um produto de qualidade para você e para a sua família: Como sabemos as festas de fim de ano estão chegando e com ela almejamos presentear as pessoas que nós amamos (nossos amigos, filhos, sobrinhos e colegas de um modo geral). Mas que presente poderia ser o ideal? Bom trago para vocês o livro do Cascudinho do autor José Bessa, com certeza quem receber esse lindo presente irá adorar (eu visto uma camisa do Flamengo e beijo o escudo rubro-negro caso alguém não goste, logicamente só prometo isso, pois sei que o livro está incrível e todos irão amar, pois o professor Bessa é um craque em contar lindas histórias) Tenho certeza que você que está me lendo nesse momento não vai se arrepender, então faça o seguinte: 1º Entre no site da Editora do Brasil por meio desse link : https://lojavirtual.editoradobrasil.com.br/73450112211-cascudinho-o-peixe-contador-de-historias.html 2º Adicione ao carrinho de compras 3º E por fim, divirta-se com essa linda história feita pelo querido professor Bessa que foram ilustradas lindamente pela professora Luciana Grether Abraço querido professor!
Comentar em resposta a Rodrigo Martins
Avatar
Marcia Freitas (via FB) comentou:
05/10/2019
Vou ter que conquistar um exemplar e autógrafo...rsrs
Comentar em resposta a Marcia Freitas (via FB)
Avatar
Ana Silva comentou:
05/10/2019
Hahaha que linda crônica. Fiquei curiosa com as histórias de Cascudinho. Excelente leitura para a criançada, para adultos que apreciam boas narrativas.
Comentar em resposta a Ana Silva