CRÔNICAS

O dia em que fugi de um cadeirante

Em: 12 de Abril de 2015 Visualizações: 23812
O dia em que fugi de um cadeirante
Contar ou não contar? Hesito. Sei que não é nada honroso tornar público o que aconteceu a mim e ao meu amigo de fé, irmão, camarada, Roberto Luis, quando fomos atacados em plena luz do dia, num parque em Niterói. Verás que um filho teu não foge à luta? Eu, hein! Nem pensar! Fugimos em desabalada carreira, perseguidos de perto por um furioso agressor completamente ensandecido. Pensamos com nossas pernas.
Os mais afoitos argumentam que isso é motivo para se envergonhar. Mas há controvérsias. Afinal, "apanhar do Governo não é desfeita" como ensinou Fabiano, personagem de Vidas Secas, depois de levar surra de facão de um soldado. O próprio escritor Graciliano Ramos apanhou muito nos cárceres da ditadura Vargas e ostentou as feridas como medalha, não como desonra.
Acontece que no nosso caso o agressor não era "o governo", mas um desgovernado cadeirante. É. Isso mesmo! Um cadeirante com rodas no lugar das pernas. A humilhação reside aí, nas condições desiguais que, em tese, nos eram amplamente favoráveis. Daria para encará-lo. Éramos dois contra um e ainda assim nos pirulitamos, mas não foi por escrúpulos de bater num deficiente. Demos às de vila-diogo por instinto de conservação, digamos assim, ou se preferir, por medo mesmo.
Por isso, hesito em contar, nem tanto em respeito a Roberto Luis, um poço de mansidão, que nada tem de fanfarrão, mas por mim, que fico com a reputação arranhada ao admitir que nos faltou o brio e a coragem do cadeirante - qualidades que lhe conferiram superioridade sobre nós. Portanto, se conto tudo, sem nada omitir, é porque confio na indulgência do leitor. Foi assim.
Rota de fuga
 

No sábado de aleluia, de manhã bem cedinho, saímos como de costume para nossa caminhada matinal no arborizado Campo de São Bento, eu e Roberto Luis. Passarinhos cantando, borboletas voando, pombinhos arrulhando, o sol nascendo, poucas pessoas transitando, uma ou outra com o cachorro na coleira. Embora o cenário seja idílico, todo cuidado é pouco, tem muita gente que foi assaltada aqui nessa hora.
De repente, não mais que de repente, eis que surge diante de nós um cadeirante, que depois soubemos se chamar Benjamin. Seus olhos faiscantes cuspiam fogo, ele nos ameaçou e sem mais nem menos avançou, trotando sobre rodas, numa velocidade inacreditável, disposto a tudo.
- Corre, Bob Lucho! - gritei ao ver a valentia do meliante.
Quando chamo Roberto Luis de Bob Lucho - e ele sabe disso - é porque o bicho está pegando. E estava. Saímos emparelhados com o cadeirante nos nossos calcanhares, parecia cão raivoso. Na perseguição cinematográfica, enveredamos pela alameda principal, seguimos a trilha do parque pelo meio da vegetação, invadimos canteiros de plantas, contornamos as bordas do lago, com o agressor em nosso encalço. Gritamos por socorro, na esperança de que o jardineiro ali presente fizesse algo, mas ele, insensível, parecia se divertir com nossa desgraça.
Exagero se digo que o embate tinha algo de épico, com cheiro de Guerra de Tróia no ar? Só sei que baixou em mim Aquiles, o herói grego "dos pés ligeiros", eu quase voava, só que numa história invertida, pois o perseguidor era Heitor, o troiano. O diabo é que o bafo deste Heitor no meu talão me lembrava Aquiles, morto com flechada no calcanhar, única parte vulnerável de seu corpo. Com a respiração alterada, o coração palpitante, em frangalhos e exauridos, só não fomos flechados, porque subimos celeremente as escadas do coreto, deixando o cadeirante lá embaixo.
Duas vidas
Convém te apresentar os dois personagens principais dessa história: Roberto Luis Freire - o Bob Lucho e Benjamin Fonseca - o Benje. Ambos mudaram várias vezes de identidade. Cada um, qual guerreiro tupinambá, acumulou diversos nomes em função das batalhas travadas ao longo da existência.
Foi como "Neco" que Roberto Luis entrou na minha vida. O bom Neco foi abandonado ainda bebê no portão da PUC, onde a mãe nunca ingressou. Estava assustado, marcado pelos traumas do enjeitamento, quando decidi adotá-lo. "Patife", o nome que lhe dei como tributo ao finado "Canalha", seu antecessor, não pegou. Ficou sendo "Bob" por causas das enormes orelhas que lhe dão ar de bobalhão. Logo mudou para "Bob Lucho" em homenagem a um amigo colombiano chamado Roberto Luis. Foi assim que um apelido - caso raro - acabou dando origem a este nome pomposo.
A história de "Benje" é ainda mais sofrida. Seu nome era "Chaulim", quando vadiava pelo Morro do Cavalão. Foi adotado por um coletor de papelão que puxava carroça pelas ruas de Niterói - um burro-sem-rabo - e agora tem barraca de fruta no sopé do morro. Lá encontrou alimento, carinho e um teto - dormia debaixo da carrocinha. Um dia, em julho de 2012, durante briga com um cachorro em frente ao túnel, foi atropelado por um carro que quebrou-lhe as patas traseiras.
Ferido, com fissura na coluna, a vítima foi socorrida por Marluce Toscano que a tudo assistiu. Internado num abrigo para cães abandonados de Roberta Mello, lá ficou três meses, mas segundo o veterinário precisava de cuidados especiais e teria que fazer acupuntura e fisioterapia, num tratamento caro, cujo custeio necessitava da ajuda de outras madrinhas e padrinhos. Foi tecida, então, uma rede de solidariedade na internet em busca de um lar transitório para o dito cujo que ficara aleijado.      
Fazia parte desta rede a advogada Cláudia Fonseca, que começou comprando ração, fralda e remédio, mas em fevereiro de 2013 resolveu adotá-lo, trazendo-o para o seu apartamento em Icaraí. Vida nova, nome novo. "Chaulim", agora chamado de "Benje", estava com anemia, carrapato, fazia coco e xixi no chão e arrastava as duas patas e os quartos pela casa, sujando tudo. Um calvário!
Ben Hur
Para ele não se arrastar, Cláudia encomendou um aparelho com rodas de uma empresa sediada em Botucatu (SP) - a VetCar Aparelho de Fisioterapia Veterinária. Trata-se de dispositivo personalizado com rodas, dinâmica e equilíbrio exclusivos, que requer avaliação prévia, exames, medição das pernas, peso, altura, tudo ajustado milimetricamente incluindo o comprimento das barras laterais para que Benje pudesse fazer curvas com tranquilidade. Por isso, na corrida, ele deixa Rubinho Barichello no chinelo. 
Com este aparelho em aço inox trefilado, encaixe de alumínio leve, suporte de polietileno macio e rodas emborrachadas - criação da inteligência humana - Benje passeia no parque com Cláudia, Jhonys Ribeiro ou Juciara Pinho, auxiliar de enfermagem, que faz com ele exercícios diários de fisioterapia. Ela retira o carrinho e ele já ensaia uns passos milagrosamente, depois de fazer acupuntura com Fernanda Calmont para regular o sistema nervoso e urinário e para o tônus muscular. Benje goza de um direito que todo brasileiro devia ter, da mesma forma que qualquer ser vivo.
O nosso cadeirante tem sete anos segundo o veterinário Diogo que calculou a idade através de exame de dentição. Sobreviveu porque o Brasil não é feito só de eduardos cunhas, renans calheiros e cerverós.
O Ben-Hur dos cachorros, sofrido, é gente finíssima. Apoiado pela ternura humana, é exemplo de resistência e superação. Na realidade, o "ataque" que sofremos não foi gratuito. Como todo cachorro de rua, ele territorializou todos os espaços e quem pagou o pato foi Bob, o "invasor". Dizem, porém, as más línguas - e eu aqui registro em tom de fofoca - que Benje e Bob  disputam o coração de "Madona", uma bela louraça Golden Retriever, inacessível ao bico dos dois que tentam seduzi-la quando a encontram nos passeios matinais.
O ataque, portanto, pode ter sido uma crise de ciúmes shakespeariana, digna de um Otelo. O ciúme é uma merda, mas "cachorro também é um ser humano", como disse o ex-ministro Antônio Magri em surto de sabedoria involuntária. Talvez tanto a doçura do Bob quanto a valentia do Benje se espelhem numa humanidade que a gente perde diariamente diante da barbárie cotidiana, como o assassinato do menino no Complexo do Alemão, dos negros mortos por policiais nos Estados Unidos e da constante invasão de terras indígenas.
Pronto. Contei. Advirto que o que foi aqui relatado "é tudo verdade", como no Festival de Cinema, embora, como diz Eduardo Coutinho, entre a história vivida e a história relatada há sempre uma relativa distância.

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20 Comentário(s)

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Aurora Cano comentou:
18/04/2015
Presenciei hoje o encontro de Roberto Luis e Benjie, rivais inveterados, que voltaram ao cenário de sempre, o Campo SB e deram uma lição de cidadania. Apesar das diferenças políticas e mantendo a distância ideológica que os separa, se cumprimentaram educadamente como dois cavaleiros com direito à divergências.
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Marluce Toscano comentou:
14/04/2015
Sensacional esta crônica!!! Este é o ""nosso Benji". Me fez lembrar quando ele ainda estava na hospedagem, e ele já estava numa cadeira de rodas, em fase de adaptação, liga Roberta desesperada, me pedindo para conseguir nova cadeira, pois nosso ex Chaulin, correu atrás de uma cadela no cio e quebrou a cadeira!!!! Eles precisam de oportunidade, pois se eu tivesse escutado um dos profissionais que o assistiu, hoje nosso Benji não estaria conosco. Quem resgata um animal precisa acreditar que ele tudo vai fazer para mostrar sua gratidão, como: viver, superar dificuldades, obstáculos, como faz dia a dia o nosso marrento, guerreiro, admirável Benji! Sempre apoiado pelo amor incondicional de sua dona, minha querida amiga, Claudia. Contato de Marluce Toscano
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Viviam Secin comentou:
14/04/2015
Lindas histórias que me lembram de minha Bela, inicialmente Elvira-lata, encontrada no gramado da UFF meio careca, com doença do carrapato, anêmica e tendo convulsões, mas que hoje é a pricesa da casa e cheia de mimos, mesmo com sua saúde frágil que requer nebulizações de quando em vez. Parabéns Prof Bessa!
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Cáscia Frade comentou:
13/04/2015
Adorável, como sempre. Iniciar a semana lendo um texto como esse é o prenúncio de uma linda sequência de dias. Gratíssima pelo envio dessa maravilha.
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Susana Grillo comentou:
12/04/2015
Delícia, Bessa, animais nos humanizam.. abraços
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M Dias Parizzi (via FB) comentou:
12/04/2015
i Fê, a hist de Benji lembra a de Cabral q superou a ausência de suas patas traseiras e a de Christopher, q diziam q não voltaria a andar e, com a acupuntura, corre, pula normalmente
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Marcia França (via FB) comentou:
12/04/2015
Muito bem escrito. Uma história de muitos amores envolvidos.. Lindo!!!
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VANIA comentou:
12/04/2015
NÃO FUJA DOS TEMAS IMPORTANTES, PROFESSOR RIBAMAR, ESCREVA SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CONTRA A DILMA NO LUGAR DE FICAR COMENTANDO SOBRE CACHORROS E CADELAS.
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Paola Pantolla Accorsi comentou:
12/04/2015
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Ana Lucia Abrahim comentou:
12/04/2015
Caro amigo Bessa, só você mesmo pra dar o tom de alegria nesse meu domingo...! Hilária, deliciosa, a tua crônica dos dois personagens Bob e Benje! Grande abraço! Contato de Ana Lucia Abrahim
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11/04/2015
SENSACIONAL!!!!!! Personagens lindos, dignos de um palco internacional. Contato de gerusa pontes de moura
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Ana Stanislaw comentou:
11/04/2015
Adorei, criativo, emotivo! Bem no estilo "bessafreiriano". É, ainda bem que eles não são calheiros, cunhas (vixe, vixe). Obrigada por esra crônica maravilhosa.
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Felipe Lindoso (Zagaia um blog de tudo) comentou:
11/04/2015
O tempo, o mores. Babá, meu amigo José Bessa, que foi militante corajoso, enfrentou a polícia em passeatas e protestos, e já apanhou a mando de um certo Tiradentes que não é o protomártir da independência e sim um brutalhão que ocupa caergos em certos governos da região Norte, é flagrado fugindo de um cadeirante. Vergonha! Vergonha? Deixem ele contar a história, no seu Taquiprati, abaixo também reproduzido para os preguiçosos.http://www.zagaia.blog.br/?p=347
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Fernanda Calmont Blanc (via FB) comentou:
11/04/2015
Com muita emoção e lágrimas nos olhos compartilho com vcs, meus amigos, a divertida crônica de José Ribamar Bessa Freire. Ele conta cheio de humor a história do cão Benji, que foi adotado pelo anjo Maria Claudia Fonseca, que conta com os cuidados e passeios de Jhonys Ribeiro e Juciara Pinho , e cuidados veterinários do Diogo Vet e minhas agulhinhas semanais. Benji anda motorizado pelo Vet Car ( Eduardo Diniz da Eduardo Diniz da Gama) pelas ruas de Icaraí, atraindo olhares curiosos e cativando corações.
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Maria Celeste Freire Corrêa comentou:
11/04/2015
Em tempos de tanto ódio essa coluna mostra de forma lúdica o amor e a generosidade dessas pessoas e isso nos conforta e nos faz não perder a fé na humanidade, depois de uma semana pesada pelas mortes no Alemão, pelas atitudes irresponsáveis dos nossos políticos... Ufa!! uma dose de esperança!!
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Maria Celeste Freire Corrêa comentou:
11/04/2015
Em tempos de tanto ódio essa coluna mostra de forma lúdica o amor e a generosidade dessas pessoas e isso nos conforta e nos faz não perder a fé na humanidade, depois de uma semana pesada pelas mortes no Alemão, pelas atitudes irresponsáveis dos nossos políticos... Ufa!! uma dose de esperança!!
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Maria Celeste Freire Corrêa comentou:
11/04/2015
Em tempos de tanto ódio essa coluna mostra de forma lúdica o amor e a generosidade dessas pessoas e isso nos conforta e nos faz não perder a fé na humanidade, depois de uma semana pesada pelas mortes no Alemão, pelas atitudes irresponsáveis dos nossos políticos... Ufa!! uma dose de esperança!!
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Diogo comentou:
11/04/2015
Lembro-me até hj do primeiro dia que vi o "chauim", em Meu consultório. O estado clínico geral era bem crítico, disse para a Dra Claudia que o prognóstico era reservado em vias de se tornar desfavorável. Mas aí entram os milagres da Vida. Com Mto amor, carinho e mtos cuidados hj vejo o Benji lindo e saudável. Mais uma prova de amor Incondicional de Deus, operando não só nas nossas vidas, mas também na dos animais. Prova de superação e força de viver. Parabéns Claudia e esposo e sua filha Bia, vcs mostraram que com amor acima de tudo, podemos ter um mundo melhor. Att Dr Diogo Alves da Conceiçao.
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kelly melo comentou:
10/04/2015
sempre ótimas colunas professor, mas essa tá especial :-D
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Maria Celeste Freire Correa (via FB) comentou:
10/04/2015
È menos humilhante o Bob ter medo de um cadeirante, do que o Canalha que tinha verdadeiro terror dos gatos do Campo de S.Bento(que Deus o tenha em bom lugar.rs)
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