CRÔNICAS

II. Amazônia: a civilização de palha

Em: 11 de Fevereiro de 1987 Visualizações: 8522
II. Amazônia: a civilização de palha

Não sou eu quem vive em Manaus, É Manaus que vive em mim.

Astrid Cabral (1936-      )poeta amazonense residente no Rio. 

As viagens dos europeus ao longo do rio Amazonas no século XVI nos deixaram descrições e relatos com informações dispersas e muitas vezes impressionistas sobre a distribuição da população indígena e sobre os padrões de povoamento e ocupação do seu território.

Os primeiros cronistas foram unânimes em afirmar que toda a calha central do rio Amazonas era ocupada por "uma multidão infinita" de índios, que "por serem muitos não se puderam contar". E usaram e abusaram dos superlativos, não escondendo a sua admiração por esse fato.
No Alto Solimões, a expedição de Orellana (1541-1542) passou o tempo todo procurando "fugir dos povoados que eram tantos que causavam espanto". Na região do Baixo Amazonas, "foram tantas as povoações que aí apareciam e vimos, que ficamos abismados".
Frei Carvajal, o cronista de Orellana, informa sobre a existência, na várzea amazônica, de "muitas e grandíssimas povoações que reúnem 50 mil homens entre os 30 e 70 anos". Segundo ele, a maior distância entre uma povoação e outra era de meia légua e havia aldeias "que se estendiam por mais de cinco léguas sem separação de uma casa para outra, o que era coisa maravilhosa de ver".
Se o número reduzido de membros da expedição desta primeira viagem - menos de 60 homens - pode tê-los levado a exagerar a quantidade de índios encontrados, esse argumento é facilmente demolido com a segunda viagem com a segunda viagem comandada por Ursua-Aguirre (1560-61), vinte anos depois, quando mais de 3.000 homens navagaram ao longo de todo o rio Amazonas até a sua foz. Os três relatos conhecidos desta viagem confirmam a alta densidade demográfica da região, com idênticos superlativos sobre "as mais populosas terras já descobertas por cristão", ocupada por tanta gente "que dava medo".
Demografia Histórica

Nas primeiras décadas do século XVII, a região - que permanecera até então isolada de novos contatos com o europeu - apresentava um quadro relativamente inalterado.
A viagem de Pedro Teixeira (1637-1639) que fez o percurso de subida e descida de todo o rio Amazonas com mais de 2.000 homens, encontra aldeias tão próximas umas das outras que "dos últimos povoados de umas, em muitas delas, se ouvem lavrar os paus nas outras", segundo o cronista da viagem de descida, o jesuíta Cristóbal de Acuña.
Acuña vai encontrar também províncias "com mais de 200 léguas de comprimento, continuando-se as suas aldeias tão amiúde, que apenas se perde uma de vista e já se descobre outra".
O piloto-mor da armada de Teixeira, Bento da Costa, citado pelo padre Alonso de Rojas, concluiu que a população da Amazônia era maior do que a de "todo o resto das Índias descobertas" e que "são tantos e sem números os índios que se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo".
Durante muito tempo, as informações dos cronistas, consideradas exageradas, foram deixadas de lado pela historiografia tradicional, incapaz de trabalhá-las criticamente.
No entanto, as pesquisas arqueológicas dos últimos trinta anos dão conta de extensas aldeias habitadas e nos oferecem evidências que reforçam os testemunhos oculares dos cronistas, apesar da maioria dos 334 sítios arqueológicos da Amazônia brasileira já cadastrados pelo Museu Goeldi, em 1982, permanecerem abandonados e destruídos.
Estudos recentes de Demografia Histórica, especialmente os realizados pela denominada Escola de Berkeley, refinaram os métodos de abordagem da questão, cruzando informações históricas, analisando os padrões de subsistência, inventariando o potencial ecológico da região e assumindo os resultados das pesquisas arqueológicas. Com tais procedimentos, William Denevan estimou uma população de mais de 6.800.000 índios vivendo no século XVI na região que ele denominou de "Grande Amazônia", onde eram faladas mais de 700 línguas diferentes, de acordo com os recentes trabalhos de classificação de línguas, notadamente os realizados pelo tcheco Cestmir Lukotka.
Padrões de Ocupação
Se é correta a hipótese cada vez mais fortalecida por diferentes disciplinas de que a Amazônia era densamente povoada no século XVI, então cabem algumas perguntas: como se deu a ocupação do espaço pelas sociedades indígenas?  Como é que os índios se apropriaram desse espaço, como o habitaram e como o hierarquizaram? Como estavam organizadas as suas aldeias? Qual era a percepção que os próprios índios tinham do seu território?
As perguntas não podem ser respondidas fora do quadro complexo da rede de relações sociais aqui existente e da enorme diversidade de línguas e culturas que deram diferentes respostas. No entanto, algumas generalizações podem ser feitas.
Os povos que habitavam a calha central do Amazonas eram todos agricultores em maior ou menor escala. Realizaram experiências botânicas, domesticaram e cultivaram uma enorme variedade de plantas como a mandioca, o milho, o algodão e o tabaco, e descobriram as propriedades nutritivas e medicinais de ervas e frutas. Produziram uma cerâmica refinada e instrumentos de trabalho capazes de transformar a mandioca em farinha e o algodão em redes e mantas coloridas. Construíram habitações amplas e arejadas. Promoveram um intenso comércio intertribal. Criaram uma literatura oral vigorosa, narrativas míticas, poemas, músicas, danças. Migraram, navegaram, brigaram, fizeram e desfizeram alianças, amaram, viveram e reproduziram sua existência aqui graças a uma leitura inteligente da região aliada a uma capacidade aguda de observação.
Mas os povos amazônicos, ao contrário dos aztecas e andinos, não deixaram relatos escritos contando a sua experiência de vida. E os cronistas europeus que descreveram esta realidade, o fizeram usando categorias nem sempre apropriadas e muitas vezes impotentes para dar conta daquilo que viram.
Da mesma forma que o mutum foi chamado equivocadamente de peru, o espaço territorial indígena, na visão dos europeus, estava conformado por cidades, bairros, fortalezas, muralhas, avenidas, ruas, pontes, praças, portos estradas, edifícios e casas, denominações quase sempre inadequadas para descrever uma realidade nova, diferente, "outra".
No rio Amazonas, na medida em que o bergantim de Orellana ia navegando, "apareciam grandes cidades que estavam alvejando". No Solimões, eles encontraram "uma aldeia grande e populosa com muitos bairros, cada qual com um desembarcadouro no rio". E mais adiante, batizaram uma localidade com o nome de "Povoado da Rua", porque era constituída de  "uma única rua, com uma praça no meio". Abaixo da foz do Madeira viram uma aldeia dotada de "largas avenidas", que pelo seu tamanho "devia ser capital de algum grande senhor". Em território dos Omagua, ainda no Solimões, encontraram "muitos caminhos largos, estradas reais, pela terra adentro", ligando a várzea com a terra firme.
O capitão Altamirano, um dos cronistas da expedição Ursua-Aguirre, viajando vinte anos depois de Orellana, confirma a existência desses caminhos e acrescenta outros dados sobre uma povoação - uma fortaleza no alto de um morro - "que para subir nela se subia por mais de 100 degraus que tinha cada escada feita no barranco".
O outro cronista de Ursua-Aguirre, o soldado Francisco Vazquez, descreveu uma aldeia Omagua, no Alto Solimões, "com dois bairros pequenos", cada um com 30 casas e em cada casa 50 a 60 índios, com mulheres e filhos, o que totaliza para os dois "bairros" mais de 20.000 moradores índios.
No relato de outro cronista, Ortiguera, próximo a Coari, Lopo de Aguirre encontra "casas grandes e redondas de vara en tierra, sem paredes, com duas portas, uma para o rio e outra para a floresta, com o teto chegando até o chão". Mais abaixo, na altura do Purus, havia "casas grandes, amplas e quadradas". Encontraram também em outra localidade, "casas em fila, uma ao lado da outra, prolongando-se pelo barranco do rio".
Sociedades igualitárias

As relações sociais e a estrutura de parentesco, que eram diversas, determinaram formas diferentes de ocupação que surpreenderam os europeus. Acuña informa que as casas dos índios Yorimán, no Solimões, ocupavam mais de uma légua de extensão:
"E como não vive em cada casa uma família apenas, como acontece ordinariamente em nossa Espanha, mas que pelo menos se abrigam debaixo de cada teto 4 ou 5 e muitas vezes ainda mais, disso se poderá deduzir a multidão de toda esta aldeia".
O que parece inquestionável na descrição dos cronistas é que, apesar de uma certa uniformidade ecológica na várzea do rio Amazonas, as aldeias e casas diferiam uma das outras pelo tamanho, pela forma e pela concepção presente na maneira de organizá-las, demonstrando com isso que cada sociedade tribal adotou uma solução própria na ocupação de seu território.
Os viajantes perceberam, no entanto, no meio das diferenças, algumas características comuns dessas culturas, denominadas por Berta Ribeitro como "civilização de palha". Alonso de Rojas explica que "as casas e edifícios de todos os índios são de madeira, lavradas com curiosidade e cobertas de palha; não há nenhuma de pedra nem coberta de telhas".
Os trabalhos mais recentes de etnografia realizados na Amazônia com grupos que continuam resistindo hoje demonstram também que "o que há de comum em todas essas sociedades é o fato de que a organização espacial reflete uma concepção de sociedade que é nitidamente igualitária", conforme esclarece Sylvia Caiuby Novaes, organizadora do livro "Habitações Indígenas".
É dentro deste quadro mais amplo da Amazônia que se situa a região do Rio Negro, onde se encontra localizada hoje a cidade de Manaus.

(Na próxima quarta-feira "Rio Negro: as malocas e as muralhas")..

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

Nenhum Comentário