CRÔNICAS

Vibrião do cólera: o crime perfeito

Em: 12 de Novembro de 1991 Visualizações: 9036
Vibrião do cólera: o crime perfeito
 
 
Se alguém mata um homem, é um assassino.
Se mata milhões de homens, é um herói.
Jean Rostand (1894-1977) – filósofo francês
 
 
As pessoas se borram de medo – literalmente – só em ouvir o nome DELE. Tem fama de valentão, de assassino sanguinário. Procurado e caçado em todo o país, ELE vive se escondendo das autoridades. Decidiu viajar a Manaus para aprender novas técnicas de homicídio e descobrir como realizar o crime perfeito.
ELE veio do Peru, descendo o rio Amazonas. Foi visto em Coari num motor carregado de bananas. Na parada em Codajás, envenenou várias crianças. Passou por Manacapuru e lá, feriu mortalmente duas pessoas. Desembarcou em Manaus, no Ródo, desceu a rampa sozinho, passou sem ser percebido pelas autoridades, e pegou um ônibus, indo direto para a Compensa, onde chegou tão de repente como era seu jeito de sempre chegar.

ELE adora forró. Foi a um baile no Clube Desportivo da Compensa (CDC), ali na Rua Belo Horizonte. Não foi reconhecido e acabou escapando de uma bala que atravessou as costelas do estudante Francisco Elise Sena, de 18 anos. No dia seguinte, foi para um arrasta-pé na boate ‘Globo de Ouro’, em São José Operário, onde assistiu a galera ‘Pitiu’ matar a pauladas o comerciário Marcos Vinicius, solteiro, 24 anos, por uma briga boba.
ELE estava lá na discoteca ‘Lambateria’, na Rua 9 de Maio, no bairro de São Lázaro. Presenciou quando o ex-cabo do Exército, Jucenildo, 20 anos, solteiro, passou a mão na bunda da Maria de Fátima – a Fafá, namorada do mecânico Lucas, e viu com seus próprios olhos quando Lucas deu duas facadas na barriga do ex-cabo, matando-o na hora e deixando seu corpo numa poça de sangue.
ELE observou friamente, com um brilho nos olhos, as facadas dadas pela doméstica Terezinha Silva, 28 anos, em seu ex-marido Idelbrando Silva, 27 anos, eletricista, em plena Rua 5 do Riacho Doce, uma ocupação – os jornais falam ‘invasão’ - na Estrada do Aleixo.  Idelbrando morreu com as tripas de fora, sem ter tempo de dizer: « Ai Jesus ».
Todos esses crimes foram cometidos nessa semana na periferia de Manaus ou no interior, noticiados nas páginas policiais dos jornais. Tiros, facadas, pauladas e até veneno foram as armas do crime – eficazes, é verdade - mas tecnicamente primárias, porque mataram de um em um e chamaram a atenção da imprensa e da polícia. ELE buscava algo mais sofisticado. Achou quando foi tomar banho de igarapé.
A arma bacteriológica
Interessado no crime perfeito, que não deixa vestígios, ELE descobriu, enfim, como matar coletivamente milhares de pessoas. Nas suas andanças, localizou as vítimas: mais de 400 mil moradores dos bairros de Manaus cortados por 26 igarapés, onde a bosta se acumula. Sem água tratada, saneamento básico, nem sequer fossa séptica, a população está morrendo de muitas doenças, até mesmo de parasitose e subnutrição.
ELE estava lá, quando visitei o bairro Amazonino Mendes – o Mutirão – formado por cubículos de madeira, sem esgoto nem água encanada. Quando eu descia uma ladeira empinadinha, uma senhora aparece na porta e - splish, splash – joga bem em frente à sua própria casa o conteúdo de um penico: vários quilos de matéria fecal. Ao lado, crianças jogam bola, chutando aquilo que nem o Tafarel encaixaria ouvindo o grito do Galvão Bueno:
 – Vai que é tua!
Trata-se de um assassinato coletivo, gradual, mas seguro. A polícia e a imprensa não percebem ou fingem não perceber. As próprias vítimas em potencial acham que as mortes são fatalidade do destino ou falta de sorte e não o resultado da ação humana premeditada. Ninguém desconfia dos verdadeiros criminosos, autoridades escondidas detrás do paletó e da gravata, que se enriquecem a custa de tantas mortes, desviando os recursos que deviam ser aplicados em saneamento básico e saúde.
Foi ai que ELE, o vibrião do cólera, que fazia todo mundo se borrar, deslocou-se do Peru para os países da América Latina e em dois meses chegou em Manaus. Infiltrou-se nos bosteiros da cidade e contaminou a água dos igarapés. Dali passou a atacar a população. O vibrião, uma bactéria vagabunda que no microscópio parece uma vírgula, se reproduz velozmente no intestino humano, produz uma toxina que causa diarreia intensa, evoluindo rapidamente para desidratação grave e diminuição da pressão sanguínea.
Além da diarreia, surgem outros sintomas: cólicas e dores abdominais, náuseas e vômitos, perda de volume sanguíneo, taquicardia. O risco de morte é alto, sobretudo em crianças pequenas, que ficam desidratadas, com a pele cheia de manchas. Manaus, nesse momento, final de 1991, enfrenta uma epidemia que parece preocupar as autoridades sanitárias.
A epidemia atraiu os secretários de saúde de todo o Brasil que programaram uma reunião neste fim de semana no Tropical Hotel para aprender como se combate a cólera a partir da experiência acumulada no Amazonas. O coordenador metropolitano do combate à cólera, o médico Evandro Melo, tranquilizou todo mundo, declarando ao correspondente do Jornal do Brasil em Manaus:
«Não se preocupem com a bactéria da cólera, ela tem poucas chances de sobreviver. O meio ambiente da periferia de Manaus está tão supercarregado de microorganismos poderosos, todos eles competindo em busca de alimentos, que o vibrião não sobreviverá ».
Moral da história: se o Brasil inteiro quiser impedir o avanço da doença, tem que importar os bosteiros dos igarapés de Manaus, que estão tão contaminados, mas tão contaminados, que o vibrião se caga de medo de ser estraçalhado pelos demais microorganismos. Por outro lado, a infecção só se estabelece se forem ingeridos em média 100 milhões de víbris, já que normalmente eles não resistem à acidez gástrica e morrem na passagem pelo estômago.  
Quando ouviu a declaração do médico Evandro Melo e todas essas considerações, o vibrião, vitorioso, sorriu. ELE, o vibrião, que presenciara tantas mortes na periferia de Manaus em decorrência da violência, crimes passionais cometidos por amadores, descobria, enfim, o crime perfeito. Ninguém identificará o criminoso.
Suco de ameba
« O irônico é que quem mais causa danos ao homem não são dinossauros ou grandes paquidermes, são justamente seres microscópicos invisíveis a olho nu » - declarou o biólogo Paul Ewald, para quem o poder de fogo do vibrião do cólera depende, em grande medida, das condições de tratamento de água do local. No Chile, onde a água é bem tratada, o vibrião não cometeu muitos crimes. Em Manaus, onde a água potável é suco de ameba, ele pintou e bordou.
Quem sabe muito bem disso é o Raimundinho, técnico de análises clínicas há mais de quinze anos, responsável por analisar as fezes dos amazonenses. Com um olho fantástico, não erra nunca, por isso ficou conhecido entre seus colegas como « O Rei da Merda ». Durante nossa conversa, no laboratório do IMPAS, ele não parou de trabalhar: pega o frasco com o « material », dá uma balançadinha e prepara o « milk-shake », deixa sedimentar e vai encontrando nas fezes todo tipo de helmintos e protozoários, ou seja, vermes e lombrigas. Quatro cruzes significa infecção braba.
Antes, as quatro cruzes só apareciam no coco de gente pobre dos bairros populares ou do interior. Agora, está dando nas fezes dos ricos e dos doutores do Jardim Espanha, Jardim Europa, Manauense, Vieralves e Kyssia – diz o Rei, enumerando os bairros de Manaus, enquanto prepara outro « milk shake ».  
Morreu bonzinho
Essa trajetória do vibrião traçada pelo médico Evandro Melo me lembra de fato ocorrido em dezembro de 1965, na Beneficente Portuguesa, em Manaus, onde João Barbosa, 50 anos, agonizava com uma barriga d’água, uma cirrose brutal. Já estava desenganado pelos médicos. Seu cunhado, Nelson Cunha, olhou a descomunal barriga do paciente e consultou a candidata à viúva se podia dar-lhe uma garrafada, jurando:
- Confia em mim, ele vai melhorar. A copaíba não falha.
As esperanças na medicina popular animaram a família. Dona Elisa topou a proposta do cunhado. Afinal, o Barbosa estava mesmo mais pra lá do que pra cá e o que não mata, engorda.
No dia seguinte, Nelson Cunha trouxe um líquido espesso, escuro, uma mistura de copaíba, andiroba, mel de abelha e ervas não especificadas. Enfiou meia garrafa goela abaixo do doente que, ato contínuo, deu uma cagada monumental, uma pororoca de merda. A barriga desinchou e voltou ao normal. Barbosa deu dois suspiros e depois morreu.
Mas Nelson Cunha, seu cunhado, não caiu do galho. Quando foi cobrado sobre os efeitos do seu remédio caseiro, argumentou:
- Ele morreu, é verdade, mas morreu bem melhor.  
O que, paradoxalmente, era verdade.

A população da periferia de Manaus, que mora num meio ambiente onde nem o vibrião da cólera consegue sobreviver, também está morrendo, mas morre bem melhor. Sem cólera. Viva Evandro Melo, o Nelson Cunha dos pobres!  .

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