CRÔNICAS

O choro do Lula na Raposa Serra do Sol

Em: 17 de Abril de 2005 Visualizações: 9460
O choro do Lula na Raposa Serra do Sol
Índio sem terra é como buritizal sem água: asfixiado, morre lentamente. Quem entendeu isso com muita clareza foram os Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, que vivem no noroeste de Roraima. São cerca de 15.000 índios. Eles não querem morrer. Por isso, defendem com unhas e dentes o seu território e, com ele, suas culturas, línguas e tradições. Obrigados a enfrentar inimigos ardilosos no campo político, ideológico e jurídico, não hesitaram em buscar aliados dentro e fora da sociedade brasileira, incluindo aí o papa e a rainha da Inglaterra. Com a ajuda desses aliados, ganharam anteontem uma batalha de uma guerra que ainda não terminou.
Depois de 835 dias de governo, o presidente Lula cumpriu, enfim, sua promessa de campanha e assinou o decreto de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua, com um porém: os produtores de arroz vão sair do território indígena, o que é uma vitória, mas ficam lá dentro – o que é um perigo – o núcleo urbano de Uiramutã, as unidades militares, as linhas de transmissão de energia elétrica e as estradas. Ora, qualquer fazendeiro é indenizado, se o interesse público exige a passagem por suas terras de uma estrada ou linha de transmissão. E os índios? Vão ser indenizados? Qual é a recepção que eles darão a Lula numa viagem presidencial a Roraima?
Roraima e Roma

Quem tem boca, vai a Roraima. O presidente Fernando Henrique foi, em abril de 1997, a Boa Vista. Lá, encontrou os índios, liderados pelo CIR – Conselho Indígena de Roraima, bastante revoltados, por causa das medidas do governo tomadas pelo então ministro da Justiça, Nelson Jobim, cujo despacho publicado na véspera do natal de 1996 decepava a área indígena, reduzindo significativamente o seu território. Os índios atazanaram a vida de FHC, protestando contra ele numa manifestação que foi da Base Aérea até o Palácio da Cultura.
O que aconteceu em Roraima, se repetiu nas principais capitais europeias visitadas por FHC. Em cada uma dessas cidades, ele se defrontava com o protesto de ativistas em frente às embaixadas do Brasil. Em Roma, recebeu abaixo-assinado com 3.200 assinaturas. Acontece que os índios haviam se antecipado, chegando antes do presidente. Escreveram cartas para chefes de estado de vários países, entre os quais o presidente da França, François Mitterand, o presidente italiano Oscar Luigi Scalfaro, a rainha da Inglaterra Elizabeth II, e até o próprio papa João Paulo II. Vai ver, esse último, se está mesmo no céu, deu uma de pombo-correio e entregou a carta dos índios a Nhanderu, que andou tomando lá suas providências.
Aliados de peso como o papa e a rainha eram necessários para mobilizar a opinião pública internacional contra invasões do território indígena, que aumentaram nos últimos quinze anos. Os garimpeiros que foram expulsos em 1990 do território Yanomami se mudaram de mala e cuia para a área indígena Raposa Serra do Sol, “onde organizaram núcleos habitacionais e prostíbulos, respaldados pelas lideranças políticas do emergente estado de Roraima”, conforme relata Marco Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA).
Os governadores e políticos influentes de Roraima, os pintos, os jucás, os mozarildos, os campos e os portelas, enfim, todos os gafanhotos unidos estimularam a invasão da terra indígena. Apoiaram, com dinheiro público, os rizicultores, que foram levados para lá por políticas governamentais estaduais, com o objetivo declarado de ocupar o território tradicional dos índios e, dessa forma, reduzir o seu tamanho. Criaram dentro dele, artificialmente, o município de Uiramutã, que não tem qualquer possibilidade de se sustentar com orçamento próprio. Isso aconteceu em 1997, depois que a terra já havia sido identificada pela FUNAI.
Pedido de perdão
Na defesa de sua terra, os índios de Roraima saíram pro pau com garimpeiros, rizicultores, pecuaristas, lindenbergsfarias, vereadores, deputados, prefeitos, governadores, ministros e oscambau a quatro. Participaram, nos últimos trinta anos, de uma guerra judicial, enfrentando um batalhão de advogados espertos, procuradores, juízes, tribunais, liminares, mandados de insegurança, despachos, portarias, decretos, datas vênias, enrolationorum e oscamborum a quatrorum. Processaram criminalmente um dos invasores - a Fazenda Casa Branca - que aplicou agrotóxicos nos arrozais, e com isso matou muitas aves e outros bichos, poluiu igarapés e prejudicou a saúde dos índios, causando grandes danos ambientais.
Diferentes táticas de luta foram usadas. Uma vez, os índios paralisaram na marra as obras de construção do prédio da prefeitura de Uiramutã, que estavam sendo realizadas no campo de futebol deles. Outra vez, peitaram o Exército que decidiu instalar ali a 1ª Brigada de Infantaria da Selva. Com jogo de cintura, chegaram até a criar um fundo financeiro para comprar animais e indenizar benfeitorias dos fazendeiros. Em 1996 conseguiram na Justiça Federal a proibição do CD Makuxi esperto, que contém a música “Área contínua, não”, com a letra preconceituosa de um boboca local. Depois disso, os índios lançaram o seu próprio CD – Caxiri na Cuia, o Forró da Maloca - com onze composições em português, abordando a luta pela terra.
Esse índios de Roraima que enfrentaram balas – muitos deles foram feridos, outros morreram – estão brigando por suas terras desde os tempos coloniais. Sua história devia ser ensinada em todas as escolas do Brasil, porque é um exemplo de persistência, tenacidade, coragem e sabedoria. Tem um livro bonito da pesquisadora Nádia Farage contando, tim-tim por tim-tim, como eles enfrentaram ingleses, holandeses e espanhóis que atacaram pelo norte e, dessa forma, impediram que aquela parte do território fosse incorporada por outros países. “Os peitos dos índios foram as muralhas dos sertões”, escreveu Joaquim Nabuco, confirmando que foram os índios que ganharam aquelas terras para o Brasil.
Os índios garantiram as terras para o Brasil, mas o Brasil ainda não garantiu as terras para os índios. Da mesma forma que há cinco anos o ex-governador Neudo Campos, chefe da quadrilha dos gafanhotos, ameaçou fechar 138 escolas dentro da TI Raposa/Serra do Sol, caso fosse homologada em área contínua, o governador Ottomar Pinto declarou ao Jornal Nacional, na sexta-feira, que boicotaria a medida do presidente Lula.
Na sua viagem à África, Lula fez um gesto bonito e sincero carregado de significado. Em nome do povo brasileiro, pediu perdão pela violência cometida contra os africanos, que foram escravizados. Lula, então, chorou. Ele precisa agora ir a Roraima, para pedir perdão aos índios que também foram escravizados até meados do século XVIII e tiveram suas terras espoliadas. Mas esse pedido de perdão só tem valor se vier acompanhado de políticas públicas que garantam terra encharcada capaz de manter erguidas, bonitas e altaneiras, as palmeiras de buriti. O Brasil precisa que elas frutifiquem.
P.S.1 - Agradeço aos leitores que tiveram a gentileza de me enviar a dica para escrever sobre o tema.

P.S.2 – Depois de 835 dias de governo, o presidente Lula cumpriu, enfim, sua promessa de campanha e assinou o decreto de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol..

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