CRÔNICAS

Literatura guarani: a origem dos tepinos

Em: 26 de Fevereiro de 2006 Visualizações: 7704
Literatura guarani: a origem dos tepinos
Receio que uma ou outra leitora, mais pudibunda, considere vulgar o assunto sobre o qual vamos conversar hoje, neste domingo de carnaval. O que é que eu posso fazer? Por mais baixaria que pareça, é necessário explicar a origem das coisas que fazem parte do nosso cotidiano, inclusive as que parecem menos nobres, grosseiras e até obscenas. 
A ciência ocidental e os mitos indígenas criam narrativas, algumas delas poéticas e bem-humoradas, para saciar a curiosidade humana e explicar de onde vem o vento, como se formam chuva, fogo, relâmpago e trovão. O antropólogo alemão Jurgen Riester reuniu centenas dessas histórias, que ele recolheu nos últimos anos entre os guarani da Bolívia.
O livro de sua autoria “Literatura Sagrada e Profana Guarani” registra, em mais de duas mil páginas, narrativas sobre a origem da lua nova, do arco-íris, do milho, da vida e de tantas outras coisas, entre as quais, algo mais prosaico que eles chamam em língua guarani de ‘tepino’, que seria, digamos assim, um aviso da natureza dizendo que atrás vem coisa pior.
Grito da natureza
Os guarani contam que no começo do mundo os ‘tepinos’ eram gente e andavam e falavam como qualquer pessoa. Um dia, a raposa caminhava pelo meio do mato quando encontrou dois deles, gorduchinhos e roliços:
 – Oi meus sobrinhos, pra onde é que vocês vão?.
Um deles respondeu:
- Para o Leste.
A raposa discordou:
- Ah, não vão não. Vou comer vocês.
Dito e feito. Os pobres “tepinos” imploraram pelo amor de Deus, mas a raposa, insensível, devorou os dois. De pança cheia, sentou debaixo de uma árvore para fazer a digestão. Quando levantou uma pata, aconteceu algo novo e desconhecido que nunca havia ocorrido antes: um vento forte e sonoro saiu de seu rabo, fazendo muito barulho: Pum! Puuuuuuuum!
Epa! Assustada, a raposa não sabia que diabo era aquilo. Movimentou a outra pata e – pract! – uma nova explosão, dessa vez fedorenta. Então, ela meteu o pé na estrada e desceu o morro em desabalada carreira, tentando fugir, mas os gases a seguiram ladeira abaixo. Quanto mais corria, maior era o pipoco, parecia que tinha um motor de popa no rabo.
Foi assim que surgiu o peido, cuja tradução em língua guarani é ‘tepino’. Até então, ninguém ‘tepinava’. Dizem que o Papa Paulo III, numa bula, considerou o tepino como pecado a ser apagado pelas chamas do inferno. Depois disso, liberou geral, a tal ponto que, por incrível que pareça, hoje todo mundo solta os seus: o papa Bento XVI, a rainha da Inglaterra, Lula, o governador Eduardo Braga, a Malu Mader e até a mãe da gente, incluindo a avó do ´Pão Molhado´. A média estatística é a de quinze flatos diários por pessoa. 
Flato na flauta
Os guarani garantem que quando isso acontece são os “tepinos” oprimidos que estão gritando por liberdade. No entanto, alguns teólogos ocidentais juram que, na realidade, é a alma do feijão que vai pro céu, enquanto poetas apostam que se trata do suspiro do fiofó magoado.  A questão é cultural e pode ser estudada de diferentes ângulos.
Os pesquisadores definem e classificam os ‘tepinos’, perguntando-se de onde vêm, de que são feitos, por que fedem e fazem barulho, se faz mal prendê-lo e para onde vão quando reprimidos, por que algumas pessoas morrem de rir com a simples menção do fato, digo, do 
flato, por que outras têm prazer em dispará-los, e se é possível controlá-los e dominá-los.
Num livro delicioso “Vocês, brancos, não têm alma”, o antropólogo Jorge Pozzobon conta que os índios Uacuene, no Rio Negro, realizavam campeonatos de música, em que cada um botava o dedo índice na beirada do orifício traseiro, apertando-o e soltando-o repetidas vezes, como se fosse uma flauta. Era uma sinfonia só. Havia várias categorias de prêmios: eloqüência, melodia, duração e pestilência.
Há meses, num programa de TV, o Ratinho levou para o auditório um cearense que era um verdadeiro artista. O cara dava uma pancadinha na barriga e, com o dedo no orifício, podia atender telefone, emitindo um som fanhoso parecido com “alooooooo”, ou chamar uma mulher bonita, fazendo “psit, psit” ou “psiu, psiu”.
Na tradição oral de qualquer família brasileira circulam histórias sobre o tema. Diante de um traque barulhento de indiscutível procedência, meu sobrinho ‘Pão Molhado’ gritou: “fui eu”, para livrar a cara de sua avó. Já meu primo Jerry pensava que sua mulher não soltava pum, porque todo o período de namoro foi marcado por um silêncio eterno. Em compensação, parece que ela bebia diariamente toda a água do rio Negro, porque de dois em dois minutos pedia licença: “vou lá dentro beber um copo d´água”.
Ivan, o terrível
Embora seja excelente matemático, meu amigo Ivan, do bairro de Aparecida, se ferrou por um erro de cálculo. Ele tinha 17 anos e fazia o curso científico no Colégio Estadual. Acabou se engraçando por uma colega de classe, que aceitou namorá-lo, mas só com o consentimento dos pais e lá na porta da casa dela, no bairro de São Raimundo.
No dia da apresentação, Ivan almoçou feijão com mocotó e ovo frito, temperado por sua mãe, dona Hilda, de saudosa memória. Jantou uma sopa de repolho com muita cebola e pimenta, às pressas, o que o fez engolir muito ar. De barriga cheia, atravessou o igarapé de catraia, subiu a ladeira da colina e chegou na casa da amada.
Era uma casa pobre, mas o cenário havia sido cuidadosamente preparado. Pediram cadeiras emprestadas da vizinha. A família toda presente.
– Papai, mamãe, esse é o Ivan.
Agora não lembro mais se ela falou Ivan ou Ivã, mas era ele mesmo. Todo mundo tímido e formal. O papo rolava com dificuldade, intercalado por longos silêncios.
– Faz calor hoje.
– É, muito calor.
Depois: - Será que amanhã vai fazer tanto calor?
Num desses intervalos, Ivan sentiu fortes contrações, com as bactérias fermentando em seu intestino. Apertou os lábios, respirou fundo, encheu as bochechas de ar. Conseguiu prender uma, duas, dez vezes, mas os gases, em vez de serem absorvidos pela corrente sanguínea, refluíam com mais intensidade, demonstrando que não existe flato estrangulado, mas adiado.
A bolha assassina
Ivan usou os novos conhecimentos aprendidos na escola. Era aluno de química do professor Raimundo Said. Sabia que gás preso aumenta sua proporção de mercaptanos. Percebeu, em uma das contrações, que a zona de alta pressão criada pelo movimento peristáltico forçava os componentes do tubo digestivo de forma inapelável, irrecorrível e inexorável. Viu que havia perdido a parada. Nenhuma força do mundo poderia deter aquele ‘tepino’.
Ivan, naquele momento, era o próprio regente da orquestra de Pozzobon. Foi ai que ele, aluno de física do professor Mourão, cruzou as pernas para aumentar a abertura dos músculos do esfíncter anal, calculando que dessa forma podia evitar, pelo menos, o ruído trepidante. Mas errou no cálculo. A bolha assassina saiu rasgando tudo o que encontrou pela frente, quebrando o silêncio reinante na sala com um som escandalosamente estrepitoso.A tosse fingida que tentou encobri-lo, tornou-o mais patético.
A namorada, morta de vergonha, correu pra cozinha.  A avó teve um ataque de riso, o pai se fingiu de leso, a mãe disfarçou. Ao meu amigo Ivan, não restou alternativa. Sem sequer se despedir, se levantou, e saiu numa desabalada carreira pela ladeira de São Raimundo, como a raposa dos tempos míticos. Um namoro promissor destruído por um pum! Quem gostou foi minha amiga Edith, que acabou casando com o dito cujo e foram felizes para sempre.
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Referencia bibliográfica:
1) RIESTER, Jürgen. Yembosingaro Guasu - El Gran Fumar. Literatura Sagrada y Profana Guarani. 5 tomos. Santa Cruz de la Sierra-Bolivia. DFG. 1998
2) POZZOBON, Jorge. Vocês brancos não têm alma. São Paulo. Azougue Editorial/Instituto Sociambiental (ISA).2013 (Uma edição anterior do Museu Goeldi de 2002 está esgotada)

P.S. – Nosso querido Ricardo Parente morreu na quarta-feira passada. Foi embora, levando com ele sua militância e seu compromisso com os fracos, os lascados e os oprimidos. Esteve presente nas principais lutas nos últimos anos no Amazonas: movimento dos professores, partido dos trabalhadores, resistência indígena. Fica o registro da nossa saudade..

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